[360meridianos #26] O lado B de Monte Verde e Campos do Jordão
Estacionamos ao lado da praça e seguimos a pé até a porteira de madeira que marca o começo da trilha da Pedra do Cruzeiro. O nome daquela vila não poderia ser mais peculiar: Atrás da Pedra. São duas dezenas de casas que se acumulam ao redor da praça e, claro, da igreja. Atrás da Pedra é um bairro rural de Gonçalves, cidade de quatro mil habitantes que fica na Serra da Mantiqueira.
Ao seguirmos pela trilha, não demorou para surgir a capelinha branca. Com cinquenta centímetros de altura, uma minúscula cruz no topo e quase sumindo na vegetação, era a primeira das quatorze que formam a Via Crucis da Pedra do Cruzeiro. Cada uma delas representa o trajeto de Jesus até a morte e deixam claro que aquele morro é também um local de peregrinação religiosa, em especial na Páscoa.
Sem uma cruz para carregar, mas cheios de sedentarismo, subimos o morro devagarinho. Até porque o visual não permite pressa: o verde das montanhas de Minas toma conta da paisagem. Araucárias e casinhas isoladas nas serras também fazem parte da paisagem, que tem vacas pastando morro acima.
Depois de cinquenta minutos, avisamos a capela de número quatorze - sinal de que o topo está chegando. A vista do alto da Pedra do Cruzeiro é um espetáculo. Lá fica uma capela, essa em tamanho real. A porta está fechada com uma corda e um aviso: tranque ao sair. Logo suspeito a razão - há vacas no meio da Pedra do Cruzeiro. Todos os dias, elas sobem a mesma trilha por onde passam os turistas, alcançam o topo e pastam calmamente ao redor da igrejinha.
A Pedra do Cruzeiro é apenas um dos muitos atrativos naturais de Gonçalves. Há outras, como as pedras Forno, Chanfrada e Barnabé. Para quem prefere água e sombra, as cachoeiras Simão, Henriques e Sete Quedas são boas opções.
E o vilarejo de Atrás da Pedra não é o único que parece saído do passado: ali pertinho está Lambari, que também tem uma igrejinha para chamar de sua. Outro com nome peculiar e muita devoção religiosa é o vilarejo de São Sebastião das Três Orelhas.
Buscada por ser perto, amada por ser longe
Gonçalves é um paradoxo. Essa vila de Minas Gerais passou a maior parte de sua história se dedicando à agricultura. A vida por ali corre lenta, com cada morador sendo um herdeiro das paisagens da Serra da Mantiqueira. Quando o turismo enfrentou as estradas de terra e desembarcou por lá, Goncalves percebeu que tinha vocação para isso.
Além dos muitos atrativos naturais e das paisagens deslumbrantes, a cidade tem a conveniência de estar a três horas de carro de São Paulo (de BH são seis). Perto o suficiente para uma viagem de final de semana a partir da maior cidade do continente, mas escondida o bastante para não perder sua essência.
É o clima bucólico que torna Gonçalves e seus vilarejos especiais. Por ali, não espere encontrar um turismo de montanha à moda de Campos do Jordão ou Monte Verde; nada de parque temático no estilo Gramado. Gonçalves é roça e como roça atrai pequenas multidões.
Hoje, a rede hoteleira de Gonçalves já conta com 1200 quartos - capacidade para cerca de três mil visitantes. Isso sem considerar os muitos chalés de montanha e casas de temporada que se espalham pelos distritos de Gonçalves. Foi num desses que ficamos. Isolados de tudo, amanhecemos com o canto dos pássaros e começamos as noites com o coaxar dos sapos. O chalé até tem televisão, mas o programa ali é se sentar nas cadeiras que ficam no deck e contemplar as montanhas.
O encanto com a paisagem é tanto que muitos resolvem ficar de forma definitiva, o que criou outro atrativo em Gonçalves. No centro da vila, uma igreja com vitrais azuis e um relógio na torre domina as poucas ruas e praças que formam a cidade. Nos últimos anos, esse centrinho passou a ser ocupado por restaurantes, bares, cafés, docerias, empórios e bistrôs, muitos deles comandados por ex-turistas que resolveram ficar. O último Censo revelou esse movimento: a população de Gonçalves aumentou 12,2%, três vezes acima do registrado em Minas Gerais.
É o caso da mulher que nos recebe para um jantar em sua casa, na vila de São Sebastião das Três Orelhas. Após uma vida inteira em São Paulo, ela enxergou em Gonçalves uma aposentadoria diferente. Alugou uma casa na vila de poucas casas e abriu sua varanda para os turistas: todos os dias, sem exceção, ela serve o que o senso comum diz ser a melhor massa de Gonçalves.
Poucos metros abaixo, a cervejaria Três Orelhas atrai quase todo turista que passa pela região, que conta ainda com feiras de orgânicos, experiências imersivas sobre como cultivar cogumelos, produtores de azeite e até algumas vinícolas, que se espalham pelas cidades vizinhas da Serra da Mantiqueira.
A divisa entre Minas e São Paulo carrega marcas do começo do século 20. Um bom exemplo são os nomes de alguns dos municípios: Wenceslau Braz, Silvianópolis, Delfim Moreira, Delfinópolis, Bueno Brandão homenageiam políticos mineiros da República Café com Leite. As tensões após 1930 e a guerra civil de 1932 contribuíram para que a região permanecesse parada no tempo.
Em Gonçalves, os nomes também homenageiam pessoas do passado, mas de forma bem mais singela. É que muitos distritos e atrativos ainda são batizados com os nomes de antigas famílias moradoras dali, como Antunes, Henriques e Venâncios, e até a cidade foi batizada com o nome de três habitantes de sobrenome Gonçalves que moravam perto de onde está a igreja Matriz.
Uma história de pessoas rurais e reais, com ruas de terra, barulho de grilo e sem pompa. Que siga assim.