[360meridianos #29] De Paul McCartney a um show exclusivo, as lembranças de uma segunda-feira
Uma crônica sobre a presença de Paul McCartney em Belo Horizinte - e pela passagem de um taxista por nossas vidas
Não é todo dia que você vê um Beatle de perto. No meu caso, seria apenas a segunda vez: estive num show do Paul McCartney no Rio de Janeiro, em 2011. Foram necessários doze anos e algumas passagens do artista pelo Brasil até que eu o reencontrasse, dessa vez em Belo Horizonte.
Quase não fomos, é verdade. O passar da idade trouxe certas preguiças - desânimo com o trânsito para ir; medo da ausência de motoristas para voltar; pavor pela lombar após quatro horas de pé na frente do palco.
Quer dizer, a cento e vinte metros dele, o tamanho exato de um campo de futebol. Do outro lado do gramado, Paul aparecia para mim pequenino, menor que a distância entre dois dedos colocados próximos aos olhos em movimento de pinça.
No telão, ele surgiu imenso. Fazendo graça e, como já é tradicional, arriscando frases inteiras em português. Mas me adiantei na história: antes do Paul, a noite teve um táxi espírita, motorista barítono e show particular do Agnaldo Timóteo. Ou quase isso.
Saímos atrasados. Precisavámos cruzar, às dezoito horas de uma segunda-feira, os doze quilômetros que separam nossa casa do estádio onde o show aconteceria. Por trinta minutos, procuramos todos os tipos de carros de aplicativo, dos baratinhos aos mais caros. Nada. Ninguém queria a corrida; nenhum motorista topava encarar o engarrafamento anunciado.
A solução foi buscar um táxi na rua, como faziam os romanos rumo ao Coliseu. Mas a cidade, já parada, não oferecia alternativas. Eu me preparava para as duas horas e quarenta e sete minutos que o Google Maps informava serem necessárias para fazer o percurso à pé; já calculava quanto tempo levaria se combinasse ônibus, metrô e sola de all star. Até que, isolado na Avenida do Contorno, fantasmagórico num ponto de táxi desativado, ele apareceu.
O táxi parecia esperar por passageiros há horas, mas não gostou nada de saber qual era nosso destino. “Jurei que não iria lá hoje, vocês me desculpem, mas ontem passei duas horas num engarrafamento para a Arena, não tem embreagem que aguente, amigo”.
Segundos após a negativa, ele perguntou: “vocês sabem inglês?” Parecia uma pegadinha (era). Isso ficou ainda mais claro quando, após a resposta positiva, o taxista mudou de ideia e abriu a porta de trás. “Eu levo vocês, vamos. Não vou deixar ninguém perder o show do Paul”.
Não tínhamos andado nem quinhentos metros quando o preço foi revelado, mas não foi tarifa dobrada ou gorjeta generosa. “Meu neto também fala inglês, é um talento”, ele disse. Para logo depois exigir: “então vamos lá, cantem Yesterdey”.
Não houve negativa possível. Era cantar ou ir a pé; era cantar ou chatear nosso salvador. Na segunda música, o taxista soltou a voz. Dono de um vozeirão aveludado, o barítono do engarrafamento não conseguia cantar em inglês, mas deu tudo na versão brasileira, feita pelo Agnaldo Timóteo.
O engarrafamento se provou pior do que esperado e passamos duas horas e cinco minutos dentro do táxi. Para nossa sorte, Agnaldo Timóteo, digo, o taxista não parou por ali, e mergulhou no repertório do compositor.
Quando o show particular acabou, começou a apresentação do Beatle. Descemos do táxi e corremos para a entrada do estádio. Deu tempo de pegar o Paul subindo no palco e dizendo It's been a hard day's night, And I've been workin' like a dog, para loucura das 40 mil pessoas presentes.
Vivemos de tudo naquelas três horas: teve a beleza de Blackbird, a pirotecnia de Live and let die, um coral gigantesco em Hey Jude e também momentos em que o estádio ouviu num quase silêncio respeitoso, enquanto Paul McCartney cantava músicas desconhecidas pela maioria e que não fazem parte do repertório dos Beatles, mas de sua carreira solo.
Assim como esperado, teve dor na lombar e muita confusão na saída do estádio, mas os perrengues foram superados por dois momentos espirituais. O primeiro foi a parceria entre Paul, no palco, e John, no telão. Separados por décadas, eles cantaram juntos e emocionaram o estádio inteiro. Voltando pra casa, eu não conseguia parar de pensar também nas músicas cantadas pelo taxista. Não é todo dia que você compra um show, mas leva dois.
Três encarnações atrás, quando o 360 tinha meses de vida, nós visitamos o Ashram onde os Beatles passaram alguns meses, na Índia. Várias músicas do quarteto surgiram lá. Você pode ler essa reportagem aqui.