A Capital dos Capitéis e a imigração italiana no Rio Grande do Sul
Em Nova Palma, oratórios contam as histórias dos imigrantes italianos que se estabeleceram na região
Quando a parteira Maria Trentin Uliana trouxe ao mundo o décimo sexto filho do casal Bonaldo, ela não poderia imaginar que a tarefa faria com que seu nome fosse inscrito na porta de uma capela. Ou melhor: de um capitel, uma pequena construção religiosa muito popular em comunidades de imigração italiana do sul do Brasil.
O Capitel de Nossa Senhora da Medianeira, onde João e Maria Bonaldo agradeceram a Deus e às mãos da parteira pelos filhos saudáveis, fica na comunidade de Novo Paraíso e foi erguido em 1957. Esse é apenas um dos 43 que se espalham pelas vilas e distritos de Nova Palma, cidade de seis mil habitantes na região central do Rio Grande do Sul. E que, não por acaso, se intitula de “capital dos capitéis”.
Um roteiro pela Capital dos Capitéis
Nos arredores da praça de Nova Palma, há uma igreja simpática, um daqueles letreiros turísticos que ganharam o mundo, bares, cafés e até uma Rua Coberta. Mas o que alimenta o turismo da cidade é, sem dúvidas, o Centro de Pesquisas Genealógicas, onde setenta livros enormes guardam as histórias dos 140 anos de imigração italiana.
O acervo foi iniciado há sessenta anos, pelo Padre Luis Sponchiado (1922 - 2010), ele mesmo um descendente de italianos. Hoje, o museu tem registros de cinquenta mil famílias italianas no Brasil, o que transformou o local num centro de peregrinação para os que pretendem fazer o caminho de volta, buscando informações que ajudem no processo de obtenção de cidadania italiana. Mas, longe das páginas amareladas dos livros, os capitéis também registram partes dessa história.
Capitel de Nossa Senhora da Saúde, de 1946
Durante a imigração, doze faixas de terra foram divididas entre os grupos de italianos que desembarcaram em Nova Palma. Cada uma delas tinha um quilômetro de extensão, o que gerou os primeiros nomes das vilas: Linha Um, Linha Duas, Linha Três…
O Capitel mais antigo de Nova Palma é o de Santa Apolônia e foi erguido em 1898, em Linha Duas. Nele, Giuseppe e Sabina Tomasi pediam auxílio para a santa protetora dos dentes. Muitos capitéis tinham a função de agradecer por curas ou pedir proteção para problemas de saúde, na mesma lógica dos ex-votos, tão comuns no México e também nas cidades históricas mineiras.
Em Linha Um, o Capitel de Nossa Senhora da Consolação , erguido em 1942, guarda uma promessa de Ângelo Ravanello, que queria melhorar dos problemas do coração após uma infecção cutânea. O Capitel de Nossa Senhora do Rosário, erguido em 1936, foi uma promessa de Raimundo Alessio pela cicatrização de um ferimento sofrido em um acidente. O Santa Lúcia, de 1931, é uma promessa de Francisco e Virgínia Rossato pela cura dele, que vivia com problemas nos olhos. Já o de Santo Antônio de Pádua, construído em 1924, foi um pedido de um certo Maximiliano Bertoldo, que sofria com problemas gastro-hepáticos.
Capitel de Nossa Senhora do Rosário, de 1936
Em alguns casos, várias famílias se uniam nas promessas, algumas vezes pedindo a padroeiros diferentes. O Capitel de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro é uma promessa de Ângelo Rossatto, que pedia para que seu tratamento de varizes desse certo; e também do casal João Binotto e Filomena Dallasta. Após perderem três filhos recém-nascidos, eles pediram a Santa Anna pela saúde dos próximos. Depois disso, eles tiveram 15 filhos, perdendo um, que morreu aos nove meses, conforme mostra o livro “Caminho dos Capitéis”, publicado em 2021.
Capitel de São Tiago, de 1948
Outros capitéis são lembranças do perigoso processo de imigração. Erguido em 1948, o Capitel de São Tiago fica ao lado de um monumento que representa um barco e onde há uma bandeira da Itália. No capitel verde e branco, uma placa diz:
“Recordamos homens e mulheres, grandes e pequenos, que pereceram no mar ou em terra na longa viagem de imigração. Homenagem dos descendentes no centenário da colonização”.
Olinto Dalcin nasceu em Linha 11, em 1929
O capitel mais recente foi construído em 2024. Fica na antiga Linha 11, uma comunidade de 115 pessoas e que hoje se chama Pinhalzinho. É dedicado a São Francisco e foi uma reconstrução de uma estrutura antiga, que desabou em 1973, após uma batida do caminhão da prefeitura.
Esse capitel azul, inaugurado com água benta do padre, discurso da prefeita de Nova Palma, missa e um jantar com a presença de toda a comunidade, foi reconstruído por Olinto Dalcin, 95 anos, que nasceu em Linha 11.
Inauguração do Capitel de São Francisco, em 11 de janeiro de 2025
Olinto, que é avô da minha esposa, viveu em Linha Onze até a adolescência, quando foi estudar num seminário. Na infância, ele era o responsável por tocar o sino da igreja, uma tarefa que tinha sentido: o único relógio da vila pertencia ao pai dele, que assim conseguia saber a hora certa. Do antigo capitel, Olinto tem uma lembrança forte da imagem de São Francisco, representado com uma ovelha no colo.
A imagem atual é do artesão mineiro João Paulo Mota. Ela viajou dois mil quilômetros em nossas malas, protegida por sacos de papéis picados. Nela, São Francisco foi representado com a ovelha, um gato no ombro e um cachorro salsicha aos seus pés.
O Caminho dos Capitéis de Nova Palma é uma rota de turismo religioso. “É a partir dessas pequenas edificações que famílias e vizinhos, ao escolherem santos para devoção, estabeleciam ritos de solidariedade e compromissos comunitários. Ou seja, são um ponto de contato com a imaterialidade da cultura, que está presente em várias gerações de descendentes de imigrantes”, explica Dalva Maria Righi Dotto, professora do curso de turismo na Universidade Federal de Santa Maria.
Já o poeta Humberto Gabbi Zanatta (1948 - 2018) descreveu assim:
Nova Palma é chamada
Por sua fé, por ser fiel
Já que existem muitos deles:
Capital do Capitel
São pequenos oratórios
Que as famílias erigiam
Pagamento de promessas
Por graças que conseguiam
As promessas eram feitas
Pela saúde de alguém
Pelas lavouras e animais
Em situação de desdém
Construíam seus capitéis
Visíveis pelas estradas
Eram três, quatro famílias
Reunidas nessa empreitada
O Geoparque Mundial Quarta Colônia
A imigração italiana no Rio Grande do Sul começou na segunda metade do século 19. As primeiras colônias foram na Serra Gaúcha, nos arredores dos municípios atualmente conhecidos como Bento Gonçalves, Caxias do Sul e Garibaldi. A leva seguinte - chamada de Quarta Colônia - foi instalada a cerca de 300 km das primeiras, perto de Santa Maria.
Hoje, a região da Quarta Colônia Italiana envolve nove municípios: Agudo, Dona Francisca, Faxinal do Soturno, Ivorá, Pinhal Grande, Restinga Seca, São João do Polesine, Silveira Martins e Nova Palma.
Além da herança italiana, essas cidades compartilham paisagens lindas, com muitos rios e cachoeiras, e fósseis de dinossauros com mais de 200 milhões de anos. Por tudo isso, em 2023, a Quarta Colônia foi declarada Geoparque Mundial pela Unesco.
Embora os turistas de fora do Rio Grande do Sul ainda sejam raros, nos últimos anos a região ganhou pousadas charmosas, vinícolas com visitação, cachaçarias, restaurantes, mirantes e até o primeiro resort de águas termais salgadas do país, o Termas Romanas.
Se a estrutura turística no local já existe, o grande desafio ainda é o acesso: o aeroporto mais próximo, em Santa Maria, recebe poucos voos, a maioria de Porto Alegre. Já a viagem por terra a partir da capital gaúcha dura entre quatro e cinco horas.
Sobre o autor: Sou jornalista de viagem e escritor. Publiquei o romance “Dos que vão morrer, aos mortos”, com mil exemplares vendidos. Também marquei presença nas coletâneas Micros-Uai, Micros-Beagá, Crônicas da Quarentena e Encontros. Siga-me no Instagram: rafaelsettecamara.
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