[News 360 - #59] A hora do lobo: uma das experiências mais surreais do interior de Minas
Após três anos, voltei ao Santuário do Caraça, perto de Belo Horizonte — e dessa vez o lobo buscou a oferenda
Num silêncio típico de templos, sessenta pessoas observam um prato de frango. Já é noite no interior de Minas e a maioria dos presentes acabou de sair da missa. As pessoas se espalham em U, muitas delas sentadas no chão ou de costas para a igreja, a primeira neogótica construída no Brasil.
No ponto em que o U se abre, começa uma escadaria, dezoito degraus que mergulham no breu da reserva ambiental. Depois do pôr do sol, é proibido descer ali — mas todos os presentes esperam, ansiosos, que o bicho faça o caminho inverso e pegue a oferenda.
Na primeira vez em que estive no Santuário do Caraça, a pouco mais de cem quilômetros de Belo Horizonte, descrevi detalhadamente esse mosteiro de 250 anos que foi colégio interno e educou dois ex-presidentes da República, além de dezenas de governadores.
Visitado pelos dois Imperadores do Brasil — e muito elogiado pelo Pedro II — no século 20 o Caraça foi transformado em hotel (mantendo a função religiosa). Hospedagem monástica, mas com pensão completa: café da manhã, almoço, jantar e sobremesa, tudo gostoso e farto. Bebidas alcoólicas não estão incluídas no preço da diária (cerca de R$750 no quarto duplo), mas é possível comprar vinhos e cervejas locais na mercearia do Santuário.
Uma experiência, porém, faltou na visita feita há três anos: o lobo. Apesar da história e da beleza da paisagem, o Santuário do Caraça é famoso mesmo por receber visitas de lobos-guarás que vivem livres na mata que cerca o mosteiro. Até Dom Pedro II chegou a vê-los, como mostra um dos seus diários de viagem: "De dia estão nos capões. Rondam de noite uivando como cães."
Monitorados de perto pelo ICMBio e pela ONG Instituto Pró-Carnívoros, os lobos caçam e se reproduzem na natureza. Em 2024, ambientalistas localizaram e capturaram quatro lobos-guarás que vivem no Caraça. Soltos, eles passaram a ser monitorados com coleiras, o que ajuda a entender a dinâmica populacional e as ameaças sofridas pelos bichos. Ao longo das trilhas que cortam a reserva ambiental, câmeras com sensores de movimento foram instaladas, o que também ajuda a protegê-los.
A ação identificou quatro lobos: uma fêmea e três machos. O primeiro foi batizado de Chico e era um filhote de apenas 10 meses e 17 kg. O segundo foi nomeado Zico, com idade estimada de quatro anos e 29 kg. Em seguida veio a fêmea, Sampaia, e pesando 25 kg. Por fim, outro filhote: Vicente, que também tinha cerca de 10 meses e pesava 20 kg.
A hora do lobo
Era uma terça-feira, dia escolhido para garantir a presença do lobo. Nosso raciocínio tentava ter lógica: na visita anterior, em 2022, o lobo não apareceu. Era fim de semana e o Caraça estava cheio, com muitas crianças (e consequentemente mais barulho). Num dia mais vazio o lobo deve aparecer, pensamos.
Assim que descemos no Santuário, demos de cara com uma excursão enorme e um hotel com 100% de ocupação. Naquela terça o Caraça estava ainda mais concorrido do que em nossa visita anterior. Na recepção, sondei o terreno.
— E o lobo, tem aparecido?
— Varia muito. Ele não veio sexta, sábado e nem domingo, até que ontem vieram a fêmea e os dois filhotes.
— Mas hoje está mais cheio, será que ele vem?
— Impossível dizer. Tem que ter fé.
Quando publiquei no Instagram sobre a hora do lobo no Caraça, percebi que mesmo quem conhece a história do Santuário não entende como essa experiência funciona. Um conhecido comentou:
— Era hoje? Não acredito que perdi de novo! Vou ficar atento, não quero perder a próxima data.
Foram vários comentários mais ou menos assim. Muitas pessoas acham que a tal hora do lobo é marcada, um evento que acontece religiosamente, uma vez por mês. Mas os lobos-guará do Caraça, você se lembra, são livres. A hora do lobo é a que ele quiser, não importa se o Santuário está lotado ou se só meia dúzia de pessoas o aguardam.
Por volta das 19h daquela terça, tomamos nosso lugar em frente à igreja e esperamos. Logo depois veio o monitor, carregando uma bandeja com frango e frutas. Não demorou para o lugar lotar.
— Deixem os celulares no silencioso. Conversem baixinho e não caminhem perto da escadaria. Se ele aparecer, não se levantem. Não tenham medo.
Confesso que minha fé falhou e duvidei da presença do lobo. Tinha muita gente ali. Mas, com quarenta minutos e uma garrafa de vinho de espera, o silêncio se intensificou. Eu mostrava alguma coisa no celular para minha esposa quando notei, com o rabo do olho, o bicho subindo a escadaria.
Ele entrou lentamente, sentindo o clima a cada degrau. Se aproximou do frango, deu três bocadas e então se aproximou das pessoas, olhos nos olhos. Então, correu para a mata.
Já teria sido incrível se tivesse acabado ali, mas ele voltou outras vezes naquela noite, até comer toda a comida disponível.
— Esse é o Zico, pessoal. Fiquem tranquilos, ele já vai voltar — disse o monitor.
Quando pisquei os olhos, o lobo estava lá de novo. Desengonçado feito um cachorro grande, patas que entortam para que a boca alcance a comida, o absurdo da vida selvagem que busca uma oferenda em frente à uma igreja centenária — e não se importa com a presença de tantos humanos.
Ele é tão desengonçado que, eu pensei, muitos ali pensaram, parece até um ser humano fantasiado de lobo. Quando o Zico enfim partiu, tive uma certeza: foi assim que surgiram os lobisomens.
Serviço: Santuário do Caraça
Afirmo sem medo de cometer um exagero: o Caraça é uma das experiências mais incríveis que já vivi.
O Santuário fica a duas horas de Belo Horizonte e as reservas são somente pelo site oficial. Combine a estadia com Catas Altas, o Santuário de Nossa Senhora da Piedade, em Caeté (abre de quarta a domingo), Ouro Preto, Mariana e, claro, Belo Horizonte.
Esse roteiro, um círculo, é percorrido facilmente de carro. Leia o texto de roteiros pelas cidades históricas mineiras.
Oficina de crônicas urbanas
No dia primeiro de maio ministrei minha oficina de crônicas urbanas: Belo Horizonte como protagonista. Foi um evento presencial, num café.
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