[CGV 01] O que você faria numa epidemia de dança?
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A misteriosa epidemia de dança de 1518
Se você acha o isolamento social da pandemia de covid-19 chato, pense que pelo menos você pode passar por ela sentado no sofá da sala. Durante uma estranha epidemia de dança ocorrida na Idade Média, centenas de pessoas passaram os quase três meses do surto se acabando de tanto dançar. E não no bom sentido.
O episódio, ocorrido na cidade francesa de Estrasburgo, em julho de 1518, intrigou os médicos da época e, ainda hoje, é considerado uma das passagens mais misteriosas da história: tudo começou quando Frau Troffea saiu de casa e começou a dançar.
Ela dançou sem música pelas ruas da cidade e foi aplaudida pelos passantes, que pensaram se tratar de uma apresentação artística. Mas ela continuou dançando mesmo quando a noite caiu e o dia amanheceu outra vez, sem parar.
Ela dançou quando seus pés ficaram cobertos de sangue e quando seu corpo começou a dar os primeiros sinais de exaustão. A única coisa que fez com que Frau Troffea parasse de dançar foi o seu próprio colapso, seis dias depois que ela ensaiou os primeiros passos.
As autoridades ficaram encucadas e mandaram a mulher para fora da cidade, para se tratar na comuna vizinha de Saverna, em um templo dedicado a São Vito, figura religiosa à qual atribuíam a maldição. A história poderia ter sido classificada apenas como um caso individual de loucura, não fosse um detalhe pra lá de estranho: a doença dançante de Frau Troffea era contagiosa.
Enquanto ela dançava até desmaiar nas ruas de Estrasburgo, mais e mais pessoas se juntaram a ela. Em uma semana, a coreografia interminável já contava com 34 pessoas. No final de um mês, 400 pessoas dançavam sem parar na cidade francesa. A maior parte delas eram mulheres.
Uma crônica escrita no século 17 descreve o episódio da epidemia de dança:
Muitas centenas em Estrasbugo começaram
A dançar e pular, mulheres e homens,
No mercado público, em becos e ruas,
Dia e noite; e muitos deles não comeram nada
Até que finalmente a doença os deixou.
Essa aflição foi chamada de dança de São Vito.
(Citação encontrada no livro Religious Dances in the Christian Church and in Popular Medicine, de E. Louis Backman, tradução livre)
Os passos variavam de pular de uma perna para a outra, giros, gritos, movimentos agitados dos braços e espasmos corporais.
Para algumas delas, a estranha epidemia de dança teve consequências letais. Certos historiadores afirmam que a praga chegou a matar 15 pessoas por dia de exaustão, ataques cardíacos, AVC ou superaquecimento corporal, embora essa informação seja contestada por outros estudiosos, por não estar documentada nos registros da época.
Os que sobreviveram relatavam, perplexos, que eles não conseguiam parar de dançar, ainda que quisessem. Em muitos registros, os dançarinos involuntários afirmavam sentir medo e desespero.
Apesar da enorme crença religiosa, médicos da época atribuíram a praga a causas naturais, motivada por “sangue quente”, para a qual o único tratamento era dançar até que o impulso de fazê-lo passasse.
Seguindo as recomendações dos especialistas, o conselho da cidade transformou carpintarias e outros espaços em pistas de dança oficiais e montou um palco no mercado de cavalos local, garantindo assim que os dançarinos tivessem público garantido.
Para que eles não precisassem bailar no silêncio, um grupo musical passou a acompanhar os enfermos, esperando assim fornecer o encorajamento necessário para que seus corpos pudessem finalmente vencer a doença e voltar a descansar.
A estratégia não funcionou como eles esperavam e cada vez mais pessoas se juntavam ao bloco de carnaval involuntário.
Eles então tentaram o inverso: proibiram, até setembro daquele ano, a dança em locais públicos e instrumentos de percussão, uma vez que acreditavam que os de corda eram menos propensos a fazer as pessoas dançarem sem parar. Aqueles que apresentavam casos mais persistentes da doença eram enviados para a mesma igreja na qual Troffea foi curada.
A maldição de São Vito: outras epidemias de dança na história
O episódio de Estrasburgo foi o maior já registrado da dançomania, ou epidemia de dança, mas a praga bailarina não parou por aí. Não foi sequer a primeira vez em que um grupo de pessoas pode ter sido acometido por ela. Historiadores acreditam que outros surtos da epidemia de dança tenham ocorrido em diferentes lugares e períodos da história.
O primeiro do qual se tem notícia ocorreu em 1020, quando 18 pessoas começaram a dançar compulsivamente em torno de uma igreja em Bernburg, na Alemanha, durante as celebrações de Natal. Na época, a maldição foi atribuída a São Vito porque o santo era o considerado o protetor dos dançarinos e dos epiléticos.
Em 1278, uma nova onda causou a queda de uma ponte que passava sobre o rio Mosa, na França, o que acabou fazendo feridos que estavam em uma capela dedicada ao santo. Já no século 14, a Suíça registrou dois episódios de dança coletiva – e ambos ocorreram nas proximidades das celebrações a São Vito.
Um dos últimos surtos de dança coletiva de que se teve notícia ocorreu na ilha de Madagascar, em 1863. A dança começou nas vilas no interior do país e se espalhou até chegar à capital. Por ali, a doença atacou, principalmente, as camadas mais pobres da população e, ao contrário do caso de Estrasburgo, os principais afetados foram homens jovens.
Os moradores nativos da ilha a batizaram de Imanenjana. Andrew Davidsson, um médico que residia no país, registrou o fato em um artigo publicado no livro An Historical Sketch, with Some Account of an Epidemic Observed in Madagascar:
Depois de reclamar, poderia se passar um, dois ou três dias, eles ficavam inquietos e nervosos e, se de alguma forma animados, mais especialmente se ouvissem o som da música ou do canto, eles ficavam perfeitamente incontroláveis e, rompendo com todas as restrições, escapavam de seus perseguidores, e se juntavam à música, quando eles dançavam às vezes por horas a fio com uma rapidez incrível.
Eles mexiam a cabeça de um lado para o outro com um movimento monótono, e as mãos da mesma forma, alternadamente para cima e para baixo. Os dançarinos nunca se juntaram cantando, mas exalavam frequentemente um profundo suspiro. Os olhos eram selvagens, e todo o rosto assumia uma expressão indescritível e abstraída, como se a atenção deles estivesse completamente retirada do que estava acontecendo ao seu redor.
A dança era regulada muito pela música, que era sempre a mais rápida possível – nunca parecia ser rápida o suficiente. Muitas vezes se tornava mais um salto do que uma dança. Eles dançavam assim ao espanto de todos, como se possuíssem algum espírito maligno e, com resistência quase sobre-humana, esgotando a paciência dos músicos, que frequentemente se revezavam alternadamente, caíam repentinamente, como se estivessem mortos; ou, como sempre acontecia, se a música fosse interrompida, eles de repente se apressariam como se tivessem sido acometidos por um novo impulso e continuavam correndo, até que caiam, quase ou completamente inconscientes.
As possíveis explicações para a epidemia de dança de 1518
Essa história foi muito bem recontada em um livro de 272 páginas do historiador estadunidense, John Waller. Intitulado de “A Time to Dance, A Time to Die: The Extraordinary Story of the Dancing Plague of 1518”, o volume reúne registros históricos que vão de anotações médicas, sermões, crônicas e atas do conselho da cidade. Evidências que procuram documentar o surgimento e a desaparição da praga, levantando também hipóteses das razões que levaram a ela.
Para ele, a dançomania foi desencadeada por um motivo bem diferente do sangue quente apontado pelos médicos da época, da vontade de se vingar dos maridos sugerida por Paracelso – que visitou Estrasburgo oito anos depois do incidente – ou da viagem de ácido lisérgico (o princípio ativo do LSD), adquirida através de pão ou arroz embolorado pelo Ergot fungi, sugerida por diversos historiadores modernos.
Segundo Waller, embora a contaminação pelo fungo pudesse causar alucinações, ele também reduzia o fluxo sanguíneo nas extremidades do corpo, o que tornaria impossível para uma pessoa intoxicada dançar por dias e noites a fio.
Em seu trabalho, ele sugere motivos muito mais sociais que biológicos. Quase todos os surtos de dança já registrados aconteceram no contexto da Europa Medieval, uma sociedade extremamente religiosa, miserável, obscurantista e propensa a histerias diversas. O imaginário popular da época era constituído, principalmente, pelo pensamento mágico, os rituais religiosos, a culpa e o medo católicos.
No surto de 1518, a cidade de Estrasburgo enfrentava, ainda, outras pragas mais mundanas: sífilis, varíola e hanseníase. E os moradores também conviviam com a fome generalizada e a instabilidade política. O cenário perfeito para um histeria coletiva causada por sofrimento e condições precárias de vida.
Para ele, a dança sem fim foi a manifestação física das angústias psicológicas enfrentadas pela população. Tudo isso com aquela pitada de fé: as pessoas eram extremamente suscetíveis a acreditar que um santo vingativo havia enviado uma praga. Logo, seus psicológicos estavam prontos para embarcar na histeria que tomou as ruas.
Além das muitas epidemias de dança que intrigaram médicos e cientistas, outras manifestações de histeria coletiva já foram registradas no passado. Na Tanzânia, em 1963, um pequeno grupo de meninas começou uma epidemia de riso que contagiou dois terços de seus colegas a ponto da escola precisar ser fechada. Ao voltarem para casa, as crianças infectaram também seus parentes. Em pouco tempo, centenas de pessoas, que somavam vilas inteiras, padeciam da crise de riso, que durou uma semana.
Já em 2005, no aeroporto de Melbourne, na Austrália, uma funcionária desmaiou e desencadeou uma onda de desmaios coletivos, levando mais de 50 pessoas ao hospital.
Fontes:
The Dancing Plague: The Strange, True Story of an Extraordinary Illness, John Waller
Choreomania: Dance and Disorder, Kélina Gotman
An Historical Sketch, with Some Account of an Epidemic Observed in Madagascar, Dr. A Davidson
https://publicdomainreview.org/essay/the-dancing-p...
Para saber mais sobre o tema
A Time to Dance, a Time to Die: The Extraordinary Story of the Dancing Plague of 1518 (Ebook em inglês)
A verdadeira história da epidemia de dança de 1518 contada em detalhes. E, acima de tudo, um mergulho nas mais estranhas capacidades da mente humana e os extremos aos quais o medo e irracionalidade podem nos levar. Saiba mais aqui.
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Mapas de papel e a arte de se perder numa viagem
Estava eu sentada sozinha, em Évora, Portugal, esperando meu almoço, que demorava mais que o normal. Na mesa ao meu lado, um casal e a filha adolescente. Ela lia Harry Potter e a Ordem da Fenix – o que me fez gostar deles imediatamente – em uma língua que parecia francês, mas os pais conversavam em espanhol. O garçom, super atrapalhado, chegou com meu almoço e levou para a adolescente um suco de sabor errado: eles tentaram em inglês, francês, espanhol e portunhol, corrigir o erro. Eu entrei na conversa e expliquei para o garçom. Foi assim nosso primeiro contato.
Em seguida, quando o garçom voltou para fazer não sei o que, eles mostraram um mapa de papel e pediram que ele apontasse onde estávamos e como fazer para ir a um lugar qualquer. O garçom olhou para eles e então para mim, desesperado. Não só ele não conseguiria responder a pergunta – que ele aparentemente não tinha entendido no portunhol do casal – como ele também não fazia ideia de como se localizar naquele mapa meio confuso.
Mais uma vez, entrei na conversa para ajudar, o que acabou significando que continuamos falando sobre a vida, as nacionalidades, os problemas, dicas de viagem e Harry Potter. Mas uma das partes dessa conversa adorável que mais me marcou foi quando eles comentaram o quanto gostavam de mapas de papel. Que a filha só sabia olhar o celular, mas que eles se recusavam a isso. A não ser quando estavam dirigindo, só usavam o mapa de papel, as próprias pernas e a ajuda de outras pessoas para se locomoverem por uma cidade. Eu sorri e disse: “realmente, se vocês não tivessem perguntado ao garçom sobre a direção no mapa, jamais teríamos nos conhecido”.Acabei passando o resto do dia me lembrando os bons momentos que tive com mapas de papel em viagens. Eu sempre tento ir ao escritório de turismo de uma cidade e pegar um mapa. Mas a verdade é que desde que o Google Maps passou a ter essa opção de baixar os mapas offline, meus mapas físicos foram perdendo o sentido de uso para me encontrar (ou me perder) e têm se tornando cada vez mais apenas suvenirs.
Na nossa volta ao mundo, em 2011, a pessoa que olhava o mapa e achava os caminhos era apelidada carinhosamente de “O Mapa”. Eu era “O Mapa” na maioria das vezes, porque gosto da função e tenho um senso razoável de direção. Mas o Rafa (menos) e a Naty também tinham seus dias de “O Mapa”. Sempre dizíamos: “cansei de ser O Mapa, assume aqui”. Lembro-me de estar em Paris pela primeira vez, abrir o mapinha, ver um prédio bonito desenhado, fazer todo mundo caminhar até lá para então chegarmos no prédio do Arquivo Público. Sou zuada até hoje por conta disso. Ou quando a Naty foi tentar ser o mapa saindo do Louvre, às 21h, e resolveu testar o francês dela para descobrir onde estávamos. Ganhamos uma super explicação que ninguém entendeu, mas pelo menos o senhorzinho foi bem simpático.
Lembramos às gargalhadas, outro dia, nossa experiência pela cidade de Ipoh, na Malásia, quando ficamos perdidos por quase uma hora porque eu e a Naty não conseguíamos concordar em que direção era o hotel e andamos em círculos. Também me lembro da Naty tentando nos guiar pelo labirinto que eram as ruas de Veneza, na nossa viagem em 2013, porque aquele mapa em escala estranha parecia criar ruas que não existiam e apagar outras.Em Nova York, em 2009, o mapa nos fez sair do lado errado do Central Park e conhecer outra parte da cidade. Ou em Roma, de tão surrado que já estava o mapinha, ele rasgou ao meio bem quando eu fazia a perigosa manobra de atravessar a rua e tentar me localizar ao mesmo tempo.
Usar um mapa de papel ao invés do Google Maps pode ser o melhor jeito de delatar “Sou Turista”. Mas quem se importa? A magia de ficar perdido e se encontrar pode ser uma das partes mais divertidas de uma viagem. Você pode descobrir coisas novas. Pode se encantar, rir ou conhecer um casal de uma espanhola com um francês e que tem uma filha que lê Harry Potter pela quinta vez. E ainda te convidam para ir a Paris, na casa deles.
Ps. Amo o Google Maps, é o aplicativo que mais uso e em diferentes situações pode te tirar de várias roubadas. Mas acho que vou tentar manter meu celular na bolsa e um mapa na mão nas próximas viagens. Depois conto se consegui essa façanha.
A nossa dica do mês é o livro Nem Sinal de Asas, da Marcela Dantés.
A escritora belo-horizontina é finalista do prêmio Jabuti 2021 com esse livro, seu romance de estreia, inspirado numa reportagem de uma mulher que morreu sozinha no seu apartamento e não foi descoberta por anos.
Sinopse:
"Anja Santiago está morta.
Da porta de seu apartamento, por entre as faixas de uma escandalosa fita zebrada, é possível ver: o pó, o vazio, o carpete azul desbotado e inocente. E ninguém.
Não há ninguém.
Quanto tempo até que se encontre o corpo de uma mulher que viveu e morreu sozinha? Quanta correspondência cabe na caixa de correio de alguém que já não é?
Nem sinal de asas narra os dias de uma mulher que viveu na ponta dos pés. Sua morte, cheia de dor, silêncios e devaneios, é o justo resumo do resto de sua vida, a solidão esmagadora de alguém que não gosta muito de gente, ela incluída.
E seu corpo, seco-múmia, no meio da sala escura onde o ar-condicionado insiste em funcionar, é só espera: quem vai chamar por ela? E quando?"
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