CGV#18 Vivendo a Diplomacia Alcoólica no Irã
Entramos numa das casas e, como um espião iraniano conspirando contra a sobriedade, ele trancou a porta e fechou as cortinas. Só então ele tirou a garrafa que escondia debaixo da jaqueta.
Olá viajante!
Você já parou para pensar nas suas memórias de viagem? Quantos lugares de fato você lembra? E quantos são só um misto de imaginação e álbum de fotos?
Esse mês eu tive a chance de revistar alguns destinos que conheci entre 8 e 10 anos atrás. E me choquei com o quanto minha memória é seletiva.
De alguns dos lugares, não lembrava nada além do que as fotos antigas. Por exemplo, de Fussen, na Alemanha, a cidade onde fica o Castelo de Neuschwanstein, eu não recordava de absolutamente nada. Inclusive, fiquei chocada ao ver os Alpes nos arrredores. Me perguntei como consegui esquecer da existência de montanhas nevadas.
Já de Cesky Krumlov, na República Tcheca, cidadezinha que considero uma das mais lindas do mundo, eu lembrava de becos e ruas como se tivesse visitado a ano passado, e não em julho de 2015.
Curioso, não é mesmo? Você já viveu alguma experiência parecida? No fim da newsletter, a atividade Escrevendo o Mundo, tem tudo a ver com isso.
E por falar em memórias, essa edição da Grandes Viajantes também trás algumas. O Rafael escreveu um Especial sobre as memórias, ficção e histórias de Hilda Furacão em Belo Horizonte. E a Naty escreveu uma Crônicas com lembranças de uma viagem recente: como ela se deparou com bebidas clandestinas no Irã.
Esperamos que vocês gostem!
Um abraço!
Hilda Furacão é nossa
Sabemos que filas de dobrar o quarteirão se formam em frente ao hotel da Hilda, que cada programa com ela dura exatos dois minutos e que numa única noite ela chegou a atender setenta e sete homens.
A frase, escrita em letras vermelhas num muro velho e esburacado, quase passa despercepida: “Salve Hilda Furacão”. Estávamos na rua Guaicurus, em Belo Horizonte, uma das maiores zonas de prostituição do Brasil e onde trabalham cerca de quatro mil profissionais do sexo. O endereço era a parada final do passeio que começou na Savassi, percorreu a pé quatro quilômetros e envolveu 15 pessoas.
Com seiscentos metros, a Guiacurus liga a Praça da Estação e a Rodoviária. A proximidade com as principais portas de entrada da cidade criaram a vocação da Guaicurus, que se acostumou com o movimento constante de pessoas de várias partes do Brasil.
Trinta hotéis se espalham ao longo da via e recebem movimento dia e noite. São prédios baixos, vários deles históricos, e em que o acesso aos andares superiores é feito por escadas. Do movimento constante vem o apelido: sobe e desce. Basta um olhar rápido para ver dezenas de pés que seguem apressados em direção aos programas, que variam de preço e duração conforme os desejos do cliente.
Presente no coração de Belo Horizonte por décadas, a zona boêmia da Guaicurus se acostumou a ser ignorada pela sociedade, que fingia não ver o segredo mais escancarado da Tradicional Família Mineira. Frequentada por Carlos Drummond, Noel Rosa, Pedro Nava e até Orson Wells, a Guaicurus só alçou fama nacional depois que Roberto Drummond lançou o livro Hilda Furacão, em 1991.
O romance se passa entre 1959 e 1964 e narra o amor impossível entre Frei Malthus, um rapaz que tenta ser santo, e Hilda, uma jovem da alta sociedade que larga os bailes do Minas Tênis Clube e o noivado com um milionário para ser puta na Guaicurus.
Roberto Drummond, o narrador, conta tudo sobre Hilda: sabemos seu perfume (Muguet du Bonheur), como eram seus olhos (cor de fumaça), a cor dos seus cabelos (um certo quê louro), como era seu sapato favorito (salto alto cravejado de vidrilhos), qual o quarto que ela ocupava no Maravilhoso Hotel (304) e até algumas de suas comidas favoritas (o caol do Café Palhares é várias vezes citado na obra). Sabemos que filas de dobrar o quarteirão se formam em frente ao hotel da Hilda, que cada programa com ela dura exatos dois minutos e que numa única noite ela chegou a atender setenta e sete homens.
O que Roberto não conta, pelo menos não diretamente, é a resposta para a segunda pergunta mais importante da obra: Por que Hilda Furacão trocou o Minas Tênis Clube pela zona boêmia? Mas a genialidade do livro está em outra pergunta, que aparece claramente no final das quase 300 páginas: a Hilda Furacão existiu?
Hilda Furacão existiu?
Parece simples, mas as respostas têm sido confusas, o que gerou uma versão mineira da famosa questão Capitu. Hilda Furacão é um romance e, por isso mesmo, ficção. Mas Roberto aumenta o mistério numa das quatro epígrafes que abrem a obra, uma frase de Dostoievski: “Não invente nunca a fábula nem a intriga. Utilize o que a própria vida oferece. A vida é infinitamente mais rica que nossas invenções. Não existe imaginação que nos proporcione o que, às vezes, nos dá a vida mais corriqueira e comum”.
Roberto se baseou na vida e a história, de tão real, parece inacreditável: vários personagens citados na obra existiram e marcaram Belo Horizonte, como Cintura Fina, Maria Tomba Homem, Antônio Luciano, Lambreta e Cidinho Bola Nossa, árbitro de futebol que um dia teve que fugir de um estádio usando uma batina preta, tamanha era a fúria da torcida do Villa Nova.
Leonel Brizola, Jânio Quadros, João Goulart, Juscelino Kubitschek também são personagens da obra, que tem o golpe militar de 1964 como ponto culminante. Se a trama de amor entre um religioso e uma prostituta é o que se destaca à primeira vista, basta virar as páginas para entender que Hilda Furacão é um livro político e fala da perda da inocência não apenas dos personagens, mas de uma geração inteira.
O próprio Frei Malthus, viciado em geleia de jabuticaba e em pesados rituais de autoflagelo, teria sido baseado em Frei Beto. Amigo de Roberto, Frei Beto não apenas nega isso, mas também se impressiona que tanta gente - incluindo Glória Peres, ficcionaista responsável pela minissérie da Globo - tenha acreditado que Hilda Furacão era real.
Quando uma brasileira morreu num asilo em Buenos Aires, vários jornais publicaram o falecimento de Hilda Furacão. No livro, Roberto Drummond faz questão de dizer que Hilda nasceu num dia 1° de Abril.
Na ficção e na vida real ainda há outra coisa em comum: graffiti, pixações, pinturas e camisetas vendidas na Rua Guaicurus lembram que a “Hilda Furacão é nossa”. Talvez essa seja a única verdade incontestável.
A caminhada BH de Hilda Furacão e Roberto Drummond
Quem frequentou a Savassi nos anos 1990 talvez se lembre de Roberto Drummond. Há vinte anos metalizado estátua, o escritor adorava savassear e percorria bares, restaurantes, cafés e livrarias, onde parava para garantir que seus livros tinham destaque nas prateleiras.
O Roberto morava na Rua Piauí, a poucos metros da casa de meus avós e da minha mãe, que era na Avenida do Contorno. Me lembro de ter encontrado com ele algumas vezes - e da reação de minha mãe quando eu, aos nove anos, perguntei qual livro ele tinha escrito.
Ao longo da vida, li Hilda algumas vezes e assisti a série outras tantas. A cada par de anos eu entrava no Google e buscava por algum walking tour ou roteiro guiado pelos passos dela em BH, sem sucesso.
No final de abril me dei conta do óbvio e criei a caminhada BH de Hilda, o quarto roteiro temático do movimento #BHapé, que leva turistas e moradores ao centro da cidade. A próxima edição do passeio será no sábado, 10 de junho. Clique aqui para mais informações e reservar.
Vivendo a diplomacia alcoólica no Irã
– Aí estão vocês, eu estava esperando! Venham!, disse, apontando para um beco que parecia ter saído de uma cena de Aladdin.
– O que vocês gostam de fazer no Brasil?
O senhor de meia-idade com bigode em forma de ferradura estava sentado ao nosso lado no restaurante do hotel de Shiraz, onde tomávamos café da manhã. No Irã, nos acostumamos com a curiosidade das pessoas, que não veem tantos estrangeiros, e ele começou a puxar papo assim que percebeu que falávamos outra língua.
As três cadeiras restantes eram ocupadas por sua mulher e seus dois filhos adolescentes que ouviam tudo, mas não engajaram na conversa.
– O Brasil é muito alegre! A gente gosta de sair com amigos, futebol, ir à praia, carnaval, samba, ir pro bar…
Depois de quatro meses longe de casa, já estávamos acostumados a emplacar o pacote genérico de agradar gringo. O diálogo foi seguido por um curto silêncio.
– Bar? – ele perguntou. Nós nos entreolhamos, com medo de termos ofendido um muçulmano mais estrito. – Vocês costumam beber no Brasil?
– Com frequência – respondi, hesitante. Teríamos pisado num campo minado cultural?
Ele se levantou, e com um ar de misteriosa formalidade, disse:
– Tenham um bom dia, eu vejo vocês mais tarde.
Para nós, a despedida soou como um "tchau e bença", mas não havia nada que pudéssemos fazer para amenizar a gafe antropológica. Além do mais, tínhamos várias mesquitas, jardins persas e fortalezas para visitar.
Só voltamos ao hotel no final da tarde. O bigodudo de olhar faiscante estava parado em frente ao portão de madeira decorado com vitrais coloridos que levava à recepção. Inquieto, ele dava voltinhas pela rua, e pareceu se alegrar quando nos viu. Pude perceber que ele escondia algo dentro de sua jaqueta marrom com um suspense digno de filme noir.
– Aí estão vocês, eu estava esperando! Venham!, disse, apontando para um beco que parecia ter saído de uma cena de Aladdin.
Nos entreolhamos, sem saber bem o que fazer. Ele percebeu nossa dúvida e chegou mais perto, afastando o braço da jaqueta para deixar ver o gargalo de uma garrafa de vidro.
– Consegui pra gente – disse, como se, em vez de cerveja, ele nos mostrasse um pacote de cocaína.
Caminhamos por um emaranhado de ruas até um pátio cercado por um conjunto de casas em um condomínio. Entramos numa delas e, como um espião iraniano conspirando contra a sobriedade, ele trancou a porta e fechou as cortinas. Só então ele tirou a garrafa que escondia debaixo da jaqueta.
– Peguei de um amigo que fabrica na casa dele – disse, triunfante.
A embalagem era de uma cerveja sem álcool muito vendida nos bares descolados do país, mas a tampinha deformada indicava que já havia sido aberta antes e fechada outra vez.
– Nós também sabemos nos divertir, viu?
Ele distribuiu o conteúdo em três copos e chamou seu filho mais novo, de doze anos, para ajudar na conversa. O garoto, que era gamer e streamer, falava o melhor inglês da família e foi nosso intérprete.
A bebida tinha o mesmo gosto de refrigerante de limão das cervejas 0% consumidas no Irã, misturada com algum tipo de álcool caseiro. Dá pra fazer vodca em casa com um punhado de batatas e uma panela de pressão, porém não é recomendável tentar isso sozinho.
Quando não é feito da forma correta, o álcool caseiro pode causar cegueira permanente e até morte. Tentei me esquecer dessa informação e do fato de que eu estava cometendo um crime passível de chibatadas enquanto dava o primeiro gole na bebida.
Conversamos sobre nossas culturas até terminar a garrafa. Ele quis saber do Carnaval e do Pelourinho, e nos contou que já tinha assistido ao clipe que o Michael Jackson gravou com o Olodum. Perguntamos sobre festas e bebidas no Irã, falamos mal do governo e aprofundamos nossa diplomacia alcóolica.
Mas, depois de uma ligação frustrada para o suposto fornecedor de uma nova garrafa de cerveja, dessa vez uma Heineken contrabandeada, nosso anfitrião começou a chorar ouvindo Earth Song de Michael Jackson.
Não sabemos se foi o álcool, a música ou a ausência da saideira prometida. Mas quando o bar fecha, é sinal que é hora de voltar para casa.
Podcast “Conflicted”: se você gosta de história e fala inglês, esse podcast é imperdível. Conta fatos, curiosidades e detalhes sobre grandes conflitos da história da humanidade, como a Guerra Cívil na Irlanda do Norte ou o Bombardeio de Dresden, na Segunda Guerra Mundial. A ideia é levantar controvérsias e perguntas difíceis, em histórias reais onde não há mocinhos e bandidos. Está disponível no Spotify.
Podcast Praia dos Ossos: Sei que esse é um podcast relativamente antigo, mas recomendo para qualquer pessoa, mesmo aquelas que não gostam de podcasts, a ouvir. Conta a história de Ângela Diniz, a pantera de Minas, que foi assassinada nos anos 70 pelo namorado, Doca Street. A produção da Radio Novelo é impecável, provelmente uma das histórias mais envolventes e reportagens mais bem produzidas que você vai ouvir. Também disponível no Spotify.
Que tal relembrar e imaginar o passado? Escreva uma aventura por um lugar que só existe na suas memórias e imaginação. Pode ser aquela casa você viveu na infância e não existe mais. Ou aquela viagem para a praia com a família quando você tinha 7 anos? Vale tudo nessa crônica, inclusive preencher os buracos da memória com ficção fantástica.