Cheiro de café da tarde
Herdamos a aparência, os costumes, o jeito de falar e até alguns comportamentos que não deveriam ser perpetuados, mas seguem vivos pela força das repetições.
A newsletter do 360meridianos está de cara nova!
O projeto Grandes Viajantes nasceu em março de 2020, quando o mundo fechou as portas e o turismo parou.
Com contas para pagar e um negócio ruindo, criamos uma campanha de financiamento coletivo. No começo, as recompensas eram livros raros com temática de viagem, que editávamos e enviávamos para os colaboradores.
Quando o turismo começou a voltar, trocamos os livros pela newsletter Grandes Viajantes. Agora, mais uma mudança: a newsletter do 360 passa a ser gratuita, aceitando apenas contribuições voluntárias.
Esse é nosso espaço para textos literários, como crônicas e contos, e para reportagens especiais, aquele tipo de conteúdo que infelizmente o SEO e o Google não permitem que sejam publicados no blog.
Esta newsletter será quinzenal. Espero que gostem!
Vó Diva tinha cheiro de café; de broa de fubá, pão de queijo saindo do forno e biscoito de polvilho. Tinha o mesmo rosto largo de minha mãe, o mesmo olhar que se repete em minha irmã.
Na casa de minha avó, uma fotografia na parede deixava claro que o padrão vinha de longe: em preto e branco, minha bisavó sorria. Tirada oitenta anos antes, a imagem mostrava uma mulher com traços que foram passados adiante a cada geração.
Se minha avó vive na aparência de minha irmã, o cheiro dela há muito se foi. Nada de entrar em casa e sentir que o pão de queijo está quase pronto, mesmo que ninguém tenha colocado uma fornada para assar. Acabou aquela vontade inexplicável de comer broa de fubá logo depois de falar com vovó ao telefone, assim como os abraços com gosto de café. Os biscoitos de polvilho, antes consumidos como pipoca, um atrás do outro, ficaram sem gosto.
Herdamos a aparência, os costumes, o jeito de falar e até alguns comportamentos que não deveriam ser perpetuados, mas seguem vivos pela força das repetições - e tome terapia para entender de onde vem a insegurança, o medo, tanta necessidade de fugir de confrontos... tudo isso é herança dos antepassados. Mas cheiro de café? Não, aquilo era só de Dona Diva e seu abraço prateado, mais ninguém.
Acreditei nisso até ontem, quando acordei e não tinha café para passar. Sonolento e com uma pontinha de dor de cabeça, lutei para dar conta de um dia caótico. No meio da rotina, correndo entre a Pampulha e o Centro de Belo Horizonte, dei de cara com o prédio de tijolos vazados do Mercado Central.
Parei o carro e busquei o balcão do Comercial Sabiá, onde comprei meio quilo de café moído na hora. A falta de tempo não permitiu uma pausa para o melhor pão de queijo de BH - e de Minas, do Brasil, do mundo inteiro - mas voltei para o carro comendo uma broa de fubá e queijo quentinha, quentinha. A cada mordida, eu pensava em Vó Diva, nos almoços de domingo e numa casa que já não existe, mas ainda transborda de gente.
Embrulhado numa embalagem de papel pardo fechada com grampeador, guardei o café no fundo da minha mochila, que coloquei no porta-malas do carro. Se na broa de fubá Vó Diva tomou conta de minhas lembranças, o pacote de café fez com que ela aparecesse em mim.
Quando entrou no carro, meu pai imediatamente a notou. Ao estacionar o veículo e levar a mochila comigo, todos a perceberam. Fiquei três horas num laboratório, aguardando um exame, e me diverti com a repetição de uma mesma cena. Ao entrar, cada pessoa dizia: que cheiro maravilhoso de café, de onde vem? Pois é, tá todo mundo perguntando, mas aqui não tem cafeteria, lanchonete, nada. Acho que esse cheiro vem de alguém, respondia a recepcionista, a última frase falada baixinho e em tom de fofoca.
Só revelei meu segredo no pilates. Eu estava guardando a mochila no armário quando percebi que os outros alunos tinham engatado uma conversa sobre café. Eu não posso tomar café porque me dá uma gastrite danada, mas amo o cheiro. Pois é, menina! Eu também, pena que me dá insônia e até taquicardia.
— Por que vocês estão falando de café? — perguntei
— Uai, não tá sentindo o cheiro que entrou com você? A vizinha deve estar passando um cafezinho — respondeu a professora.
Abri a mochila e mostrei o pacotinho pardo, para incredulidade geral. Entre alongamentos e exercícios, o cheiro de café tomou conta de tudo. Livre da mochila, Vó Diva saiu pela porta, invadiu as janelas e dominou a rua. Vai ver ela até disse para a vizinha: esse meu neto cheira a café. É coisa de família.
Inspirada em minhas avós, Vó Diva é personagem do romance Dos que Vão Morrer, aos Mortos, que espero publicar em breve.
Chorei, que lindo.
Oi genteeem!!!
Quando comecei a ler já vi Rafael falando, com sua cadência e meiguice de ser.
Nem precisei ver quem assinava o texto..
Lindo, lindo!!!
Singelo, poético e dá aquela sensação de gostoso, de casa!!
Grande abraço!!
Marcia Tanikawa