Oi, gente. Rafael falando aqui.
E para contar uma notícia maravilhosa: você se lembra que em minha última participação nesta newsletter eu te contei sobre meu livro? Pois é, acabei de saber que meu romance vai ser publicado pela Editora Urutau.
O livro se chama “Dos que vão morrer, aos mortos” e começou a ser escrito no auge da pandemia, quando estávamos todos trancados em casa e o futuro não existia.
Quer dizer, foi nessa época que comecei a colocar palavras no Google Docs, mas a verdade é que o romance nasceu no dia 9 de janeiro de 2011, data em que um telefone tocou e minha mãe morreu.
Eu demorei a perceber como o luto modificou minha vida. Em luto, pedi demissão de um emprego que amava, dei uma volta ao mundo, morei na Índia e participei da criação do 360meridianos. Marcado pelo luto, resolvi voltar a morar em BH e passei a ser um viajante que morre de medo de viajar.
Em 2020, resolvi que era hora de levar toda essa dor para a literatura. “Dos que vão morrer, aos mortos” é um livro de ficção. Como toda ficção, carrega uma dose enorme da realidade do autor e serviu também como uma espécie de exorcismo.
A pré-venda deve começar em breve e será uma etapa fundamental para a concretização desse sonho - conto com sua ajuda. Por hoje, deixo aqui um trecho do livro.
Um abraço!
Vesti meu melhor terno, coloquei uma gravata preta e segui para o cemitério. Fui de carro, com Tio Paulo, Vó Diva e Mariana. A Praça Sete tinha trânsito intenso, pessoas andando por todos os lados, formigueiro humano alheio à dor de tantos.
Passamos pela rodoviária, entramos no viaduto que corta o Rio Arrudas, subimos para o Bonfim. Meu tio parou o carro em frente ao pórtico de um cemitério que é tão velho quanto a cidade. No alto da estrutura há uma inscrição em latim: Moritvri Mortivis, e daquele dia em diante essas palavras nunca saíram de mim.
Dei os braços para minha família, juntando os nossos pedaços. Entramos na área dos velórios, passos lentos em direção ao fim, passos medrosos em direção à mãe que morreu. Ao pisarmos na câmara-ardente, todos os presentes olharam para a entrada.
Qual é o dela? Aquele. Caixão branco fechado. Tio, não podemos vê-la? Para abraçar, beijar? Cadê minha mãe, como eu sei que ela está aí, que tudo não passa de um engano, que não há outra pessoa lá dentro? Você precisa entender, ele respondeu, com olhos já cansados de tanto chorar. O corpo dela sofreu muito. Não dá para abrir. Se vocês quiserem, o caixão tem aberturas nas mãos. Mas eu não quis, tive medo.
Vó Diva não saiu mais do lado do caixão. Vovó, me dá um abraço, eu disse, tentando consolar a mãe que perdera a filha ao mesmo tempo em que exigia o colo materno que me restava. Por que isso aconteceu, meu filho? A gente brigava, mas ela estava bem, com planos, projetos. Saiu e não voltou. O que eu faço agora, oitenta anos e tendo que enterrar a filha mais nova? Eu que deveria estar ali, agora vocês ficam sem mãe. Mas você ficou, vó! Vai ter que aguentar, ser feliz com a gente. Quer um copo d’água?
Meu pai chegou e logo vieram outros parentes, e também o Pedro, meu amigo de infância, e vários jornalistas da firma, entre eles meu chefe, o Henrique, acompanhado da Gabriela. Sabe, enterrar a mãe já é terrível, mas tantas perguntas pioram a situação. O que aconteceu? Foi um acidente? Atropelada onde? O que ela estava fazendo lá, tão tarde? A notícia da morte nunca é suficiente e impõe explicações, mesmo que as respostas não façam diferença. Por trás da curiosidade e da empatia, há medo: o que eu preciso fazer para não morrer assim? Onde foi que você errou, para que eu consiga proteger a minha mãe?
Assim que o velório acabou, percebi que até aquele momento de presença fúnebre me faria falta. Pelo menos, ela estava lá comigo — é o que disseram, já que ver eu não vi. Logo chegaram os carregadores e o carrinho funerário foi puxado; eu e minha irmã íamos na frente, Tio Paulo logo atrás, servindo de muleta para Vó Diva. Seguimos pela rua principal até chegarmos ao túmulo da família, ossos, restos de vida e memória desde o tempo de meu bisavô, morto sete décadas antes. O meu avô também já descansava ali há alguns anos. Você se lembra do tanto que sofreu, mãe? Da depressão que enfrentou quando perdeu seu pai? É assim que você me deixou.
O mausoléu é simples, mas amplo. A pedra negra é cercada por canteiros de flores, ainda que nada brote ali. No centro da tumba há o nome da família gravado em letras cursivas, metálicas e indiferentes. Logo abaixo delas, dois epitáfios: uma frase de Manuel Bandeira e que foi escolhida por causa da morte de meu bisavô, que chegou ao Bonfim ao se livrar de tanta tosse e sangue e medo: “A vida inteira que poderia ter sido e que não foi”. Não foi por muito pouco, afinal a estreptomicina surgiu meses após sua derrota para a tuberculose. O outro lamento, acrescentado quarenta anos depois e quando o túmulo já era uma aldeia inteira, é de Pedro Nava: “Uma imensidade”.
Tiramos o caixão do carrinho e a tumba foi aberta. Última despedida, último choro ao lado dela. Os dois coveiros começaram a colocar o caixão em seu lugar, no mausoléu que já guardava pelo menos trinta vidas. Pela abertura, vi seis prateleiras, quatro delas ocupadas. Quem eram os tios-avós sepultados, os primos distantes que morreram e eu só soube por notícias atrasadas, dias depois do velório? Será que me cabe ali? Qual era o caixão do meu avô? Ou será que o dele já tinha sido aberto, exumado para dar lugar para outra morte? Vovô transformado em ossos, em poeira humana que descansa em pequenas urnas metálicas na parede do mausoléu.
Um dos coveiros entrou na tumba, para receber o caixão. O outro, usando uma corda, começou a levar minha mãe para dentro da pedra gelada, banquete servido para vermes famintos. Um telefone tocou. Alô! — atendeu dentro do mausoléu. O homem equilibrava o telefone com o pescoço, entre o ombro e a orelha, e conversava enquanto acomodava o caixão na prateleira, descanso temporário até que minha mãe fosse pra caixa de metal, eternidade encostada na parede. Não, pode falar, o sinal deve estar fraco porque o lugar é fechado, mas tô te ouvindo, sim! Ele até baixou o tom de voz, mas se despediu sem pressa. Disse te ligo, vamos conversar mais tarde, agora não dá, tomamos uma cervejinha amanhã, na hora do jogo. O sepultador saiu do mausoléu e recolocou, com o auxílio do colega, a pedra no lugar, vedando a abertura que leva ao subsolo. Acabou. Fomos embora, vazios de mãe, eu e Mariana abraçados.
O sol se punha escarlate. À nossa frente, a Serra do Curral emoldurava os arranha-céus que escalam a montanha. No alto da Avenida Afonso Pena, prédios modernos e espelhados refletiam o fim do dia, que termina na ponta oposta de Belo Horizonte. A avenida desce reta, quatro quilômetros de asfalto que cortam o centro da cidade de norte a sul, artéria lotada de pessoas voltando para suas casas. Observávamos a cidade planejada dos vivos, em frente, com seu ruído constante e cortante, até que o concreto dos prédios é substituído por cruzes, anjos retorcidos e Cristo crucificado no mármore. Não uma, não duas, mas centenas de vezes. Incontáveis Cristos agonizam eternamente em incontáveis túmulos, alguns novos e floridos, indicando mortes recentes e ainda choradas. Outros velhos e abandonados, provas de que até a morte em seu símbolo máximo, a sepultura, envelhece. As silhuetas de milhares de tumbas eram iluminadas pelo fim do dia, mausoléus tão grandes que pareciam casas, a cúpula da capela transformada em catedral. O município planejado dos mortos. Trezentas e cinquenta mil pessoas em sono eterno e divididas em quarteirões idênticos e de ruas largas e arborizadas, a morte reta e simétrica. Das árvores vinha o canto das maritacas que se preparavam para dormir, uma algazarra que se sobrepunha ao barulho distante do trânsito. Foi o pôr do sol mais bonito que já vi.