[News 360 - 47] Fantasmas politizados e almas amigas de escritores
Um fantasma de dois donos: Carlos Drummond de Andrade e Rubem Braga. Conheça a história dos espíritos de Belo Horizonte.
O táxi cortava a avenida vazia. Com árvores enormes, a via era um misto de escuridão, casas sendo construídas e terrenos abandonados. Na seca, outro elemento se somava ao quadro: poeira, muita.
O pó vermelho vinha das obras e das ruas sem calçamento; era carregado pelo vento que cantava alto, descendo pela Serra do Curral. Em 1930, Belo Horizonte, cidade que nasceu sob o signo da ciência e do positivismo, era um cenário fantasmagórico.
Foi nessa época que ela surgiu. Loira, jovem e com trancinhas no cabelo, a moça era uma ilha na madrugada da Avenida Afonso Pena. Ela dava sinal para o táxi, que parava. O endereço? Rua do Chumbo, no bairro Serra, na época um breu ainda maior que o centro da cidade. Assim que virou na Rua do Chumbo, o motorista tomou um susto: a moça desapareceu, com o carro em movimento e fechado.
Assustado, o homem parou num boteco, onde vários amigos tomavam cerveja, entre eles o jornalista e escritor Rubem Braga. O taxista contou sua história e os jornalistas fizeram a reportagem ali mesmo — um deles providenciou o retrato falado da moça-fantasma da Rua do Chumbo.
A cidade amanheceu com a notícia - e os telefones da redação do jornal não paravam de tocar. Nas semanas seguintes, a moça-fantasma foi avistada por centenas de pessoas, sempre em condições parecidas. Foram tantas aparições que os repórteres passaram a filtrar os casos, avaliando qual relato era de um fantasma real e qual só poderia ser imaginação.
— Não, minha senhora, não tem como você ter se encontrado com a moça-fantasma ontem, às 23h, na Avenida Paraúna. Precisamente nessa hora ela também foi vista por um político no bairro Calafate, então a sua história é mentira.
A moça-fantasma da Rua do Chumbo é uma das mais antigas assombrações de Belo Horizonte. Com um detalhe: antes de seu encontro com Rubem Braga, ela já tinha tomado um café com Carlos Drummond de Andrade.
O poeta escreveu sobre a aparição. Ele contou que a moça-fantasma de Belo Horizonte é vista sempre nas horas mais escuras — e costuma ser anunciada por um forte cheiro de dama da noite. Ela tem pontos favoritos, sempre no bairro Funcionários, e volta toda noite para sua casa, na Rua do Chumbo.
"As moças que ainda estão vivas
(hão de morrer, ficai certos)
têm medo que eu apareça
e lhes puxe a perna… Engano.
Eu fui moça, serei moça
deserta, per omnia saecula.
Não quero saber de moças.
Mas os moços me perturbam.
Não sei como libertar-me.
Se o fantasma não sofresse,
se eles ainda me gostassem
e o espiritismo consentisse,
mas eu sei que é proibido,
vós sois carne, eu sou vapor.
Um vapor que se dissolve
quando o sol rompe na Serra".
Carlos Drummond de Andrade - A Moça Fantasmas de Belo Horizonte, Sentimento do Mundo, 1940
A escritora Eunice Vivacqua, que foi amiga de Drummond, atribuiu ao poeta mais do que um simples relato artístico da moça-fantasma. Segundo ela, Drummond criou a assombração num dia de tédio, uma tentativa de ocupar as páginas do jornal em que trabalhava. Anos depois, Rubem Braga teria adotado a mesma estratégia, mas não sem citar o poeta: "O Drummond fingia ser íntimo dela", escreveu, tentando puxar para si a descoberta espiritual.
A relação entre a escrita e os fantasmas é antiga. Em Belo Horizonte, encontramos a caneta de Carlos Drummond de Andrade em pelo menos mais duas assombrações: o Avantesma da Lagoinha e o Funcionário Público da Rua Ceará. Pedro Nava cita também a Loira do Bonfim, além de elencar dezenas de aparições e lendas que fazem parte da história de Minas Gerais.
Até Abílio Barreto, principal historiador de Belo Horizonte e testemunha ocular da construção da cidade, pesquisou e escreveu sobre as lendas locais. Ele falou de Maria Papuda e dos milagres realizados pela Capela de Santana, demolida para a construção da capital.
A politização do outro mundo
Moças-fantasmas e noivas de outro mundo são aparições frequentes em vários países. As histórias costumam ter uma linha principal: a mulher jovem, bonita e vestida de noiva que pede carona de madrugada. Para pesquisadores, esse tipo de assombração está com os dias contados. É que elas representam uma época em que a mulher só era considerada completa após o casamento e os filhos. As que morriam antes, às vezes horas antes do matrimônio, passavam a eternidade vagando em busca de seus amores interrompidos. Com a mudança do papel da mulher na sociedade, a tendência é que se alterem também as histórias.
Os fantasmas são sempre reflexo dos vivos. A historiadora Heloísa Starling, no livro Guia do Morador de Belo Horizonte, fala sobre a politização dos espíritos de Belo Horizonte. Na moça-fantasma, um ponto que geralmente passa despercebido envolve o CEP da aparição: o bairro Serra, do lado de fora da cidade planejada, era o local onde moravam aqueles que não encontravam espaço dentro das ruas largas e arborizadas da capital. Era, assim como outros bairros no cinturão ao redor da Avenida do Contorno, o endereço dos excluídos.
Outro fantasma que marca presença nessa região deixa isso ainda mais claro. Vestido de fraque, roupa típica do século 19, o homem costuma ser avistado nas madrugadas de junho, sempre na esquina da Avenida do Contorno com a Rua do Ouro, o comecinho do bairro.
Ele carrega um guarda-chuva aberto, o que não deixa de ser curioso: em BH, as noites de junho são sempre secas. Citado por Nava e também por Drummond, esse espírito lembra os milhares de anônimos que se mudaram para BH após a inauguração da capital, num processo violento. É um funcionário público da velha Ouro Preto que, ao desembarcar em BH, teve que se mudar para os subúrbios e morreu no anonimato.
“Ele traz outra compreensão de BH, uma sociedade onde os funcionários tinham um bairro próprio. O Fantasma da Serra lembra a disputa de poder entre as oligarquias. Houve uma resistência enorme de vários moradores de Ouro Preto que não queriam vir para Belo Horizonte”, diz Heloísa Starling.
Esse fundo histórico e político também pode ser visto no Avantesma da Lagoinha, outro que mereceu a poesia do Drummond. O espírito sem rosto vaga pelas madrugadas do bairro da Lagoinha, terra sem lei para onde foram empurradas a classe operária, os negros e boa parte da população que não conseguia morar dentro da cidade planejada, incluindo cinco mil imigrantes italianos.
Não demorou para a Lagoinha virar a Zona Boemia da capital, o local onde ocorreu o primeiro assassinato da cidade e onde se concentravam cabarés e botecos de todo o tipo — em BH, o copo americano, muito usado em bares, é por isso chamado de copo lagoinha.
O avantesma da Lagoinha espelha essa violência social. Ele morreu atropelado e esquecido. É anunciado por um choro compulsivo e um forte cheiro de enxofre. Esse não é um fantasma inofensivo: ele tenta causar acidentes com bondes e, atualmente, ônibus que cortam os viadutos da cidade — basta uma conversa com motoristas que circulam pela região central de BH à noite para ouvir histórias atuais sobre essa aparição.
De todas as almas penadas de BH, nenhuma é mais famosa que Maria Papuda. A idosa negra e doente foi expulsa de sua casa para dar lugar ao Palácio da Liberdade, onde os governadores iriam morar e trabalhar. Ela sofria de bócio, e por isso tinha um enorme papo do pescoço e a fama de bruxa. Ao sair do casebre, Maria Papuda teria amaldiçoado os moradores do palácio.
Durante a República Velha, 10 políticos foram eleitos governadores de Minas. Desses, quatro morreram no cargo, o que deixa Maria Papuda com uma taxa de letalidade de impressionantes 40%. JK, que sabia que com alma penada não se mexe, foi o primeiro governador a morar em outro local, o Palácio das Mangabeiras, mas a presença de Maria Papuda não acabou aí. Itamar Franco, governador entre 1998 e 2001, deu entrevistas dizendo ter visto fantasmas no Palácio da Liberdade.
Hoje, Maria Papuda é lembrada a poucos metros dali: Na Rua da Bahia, um prédio que ficou anos vazio e sem uso hoje está ocupado. Os moradores deram para a ocupação o nome de Maria do Arraial. Quase 130 anos depois, Maria Papuda ainda é um símbolo da gentrificação e da luta pelo direito à moradia.
Fantasmas modernos
Todas as almas penadas citadas até agora surgiram no começo da vida de BH, mas há aparições mais recentes. Duas já entraram para o imaginário popular. O Capeta da Vilarinho surge durante uma competição de dança, numa quadra da Zona Norte da cidade. O rapaz desconhecido, mais tarde batizado de Alex, vencia todos os seus oponentes.
Após a última dança, Alex cometeu um descuido, deixando cair seu boné — e revelando um par de chifres. Na correria que se seguiu, há quem diga que o Capeta da Vilarinho tinha pés de bode e forte cheiro de enxofre. Segundo a lenda, Alex teve filhos, que hoje também dançam por ali. É, portanto, um fantasma que lembra a epidemia de dança dos anos 1980, que deixou tantos filmes e canções. Também é o primeiro espírito que vaga longe do centro da cidade.
Ainda mais atual é a lenda envolvendo o Velho da Contorno. Um idoso magro, de cabelos longos e muito grisalhos que aparece na Avenida do Contorno um pouco antes do nascer do sol. Ele é cego e pede ajuda para voltar para casa. Toda noite o idoso para no meio da avenida — e só não é atropelado porque some feito vapor quando carros e ônibus se chocam com ele, para desespero dos motoristas.
Quem já conversou com o Velho da Contorno diz que, após a morte da esposa, ele foi internado num asilo pelos filhos, que nunca mais foram visitá-lo, venderam a casa e dividiram o patrimônio. Morto, o idoso vaga pela avenida em busca de um lar que a especulação imobiliária já engoliu e transformou em arranha-céu.
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Sobre o autor: Sou jornalista de viagem e escritor. Publiquei o romance “Dos que vão morrer, aos mortos”, que se aproxima dos mil exemplares vendidos. Também marquei presença nas coletâneas Micros-Uai, Micros-Beagá, Crônicas da Quarentena e Encontros. Siga-me no Instagram: rafaelsettecamara.
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