Durante minhas primeiras horas em Cuba, dei de cara com o que, em dias pré-revolucionários, deve ter sido uma enorme loja de departamento. Sei disso porque a marca vintage da rede australiana Woolworths ainda estava impressa nos ladrilhos da calçada. Desgastada pelo tempo, ela nos recorda de uma outra Cuba que um dia habitou os charmosos casarões da avenida 23.
Hoje, a velha Woolworths segue vendendo utilidades domésticas. Um letreiro colorido com seu novo nome foi pintado na vitrine. Variedades de la 23, diz a placa. Atrás dela, vestidos coloridos de estampa floral adornam dois manequins.
Esse foi o meu primeiro contato com o varejo de Cuba. Eu havia chegado em Havana pela manhã e, completamente deslumbrada com o fato de estar finalmente ali, saí sozinha pelo bairro em busca de algo para comer. Com a sensação de quem está sob efeito de alguma droga, acabei perdendo o foco e andando por horas pelas ruas, tirando foto dos carros, das fachadas antigas, dos inúmeros cinemas retrôs e centros culturais da avenida. Meu humor estava tão bom que até o insistente assédio de rua ganhava meu sorriso.
Entrar na antiga Woolworths foi o primeiro choque no país. O grande galpão não tinha corredores e prateleiras, mas um enorme estande quadrado montado bem no centro. A disposição dos móveis por si só já contribuía para a sensação de vazio. Dentro do estande, quatro funcionários atendiam os clientes, cada um em um dos quadrantes, como se fossem quatro lojas distintas. O tipo de produto disponível variava em cada estante e vitrine: óleo de cozinha, pasta de dente, molho de tomate, azeite, vinho, um ou outro pacote de biscoito, arroz, feijão enlatado. Não muito mais que isso.
Achei tudo meio triste e meio estranho, não me arrisquei a perguntar nada. Será que eu podia comprar coisas ali? Seria aquele um dos postos de distribuição de comida do governo? Dei uma volta e saí, mas retornei na tarde seguinte para mostrar o lugar ao Jeff, como se nunca tivéssemos visto uma mercearia na vida.
Nos dias que se seguiram, era preciso encaixar a rotina. Estávamos hospedados em um pequeno estúdio no Vedado, um bairro chique de Havana que tem esse nome por ter sido construído pela máfia americana e, portanto, era vedado o acesso ao cidadão cubano comum.
Ainda hoje, é uma das regiões mais abastadas da cidade, e as pessoas que moram ali herdaram os casarões bonitos, ainda que muitas vezes desgastados pelo tempo e pela ausência de manutenção. Como fazemos sempre que chegamos em uma cidade, saímos para fazer a primeira compra, aquela em que é preciso suprir todo o necessário para transformar um Airbnb em algo parecido com uma casa.
Procuramos por um supermercado, mas o que encontramos foram várias lojinhas, vendas e mercearias e um sacolão pequeno na esquina de casa. Voltamos com café, queijo, molho de tomate, abacate, pão, macarrão, papel higiênico, manteiga, biscoito doce e salgado, banana da terra, cebola, manga, limão, cream cheese, quiabo e… rum.
“Não sei se temos uma refeição completa com essa compra aqui”, Jeff disse, olhando para os pacotes sobre a mesa.
Demorou algumas semanas para que entendêssemos que, o que à primeira vista parecia escassez, na verdade revelava uma dinâmica própria que ainda não sabíamos navegar.
Naquele dia e durante as semanas seguintes, não conseguíamos encontrar ovos em lugar nenhum. Havia galinhas por todas as partes, mas nem sinal dos ovos. Quando perguntamos a um guia a razão disso, ele disse que há três anos um furacão passou em Cuba e matou grande parte das galinhas que vivam aqui.
Tenho sérias dúvidas sobre a veracidade dessa história, mas, em outras conversas, descobri explicações mais plausíveis. Os ovos fazem parte da cesta básica cubana. Sendo assim, todo cidadão pode retirar, por um valor irrisório, uma quantidade mensal (que varia de acordo com a disponibilidade) nas bodegas do governo. Para encontrar ovos à venda, só indo atrás do excedente da produção, cerca de 10% de todos os ovos do país. Como a oferta é pouca e a procura, muita, os preços vão lá pra cima. Trinta ovos chegam a custar 2.900 pesos cubanos nos agros (uma espécie de sacolão) — ou 15 fucking dólares. Para comparação, o salário médio de um trabalhador qualificado no país é 4.000 pesos.
É também nos agros que encontramos grande parte do que é produzido nas fazendas do país. Frutas, verduras, legumes e carne de porco e frango. Tudo orgânico, fresco, respeitando o ciclo da terra e das estações. Pegamos o fim da época da manga e elas já sumiram das barracas. Por outro lado, há abacate, goiaba e malanga (um vegetal parecido com o inhame) por todos os lados.
O governo controla, ainda, uma cadeia de supermercados própria. Chamadas de Panamericanas, essas talvez sejam as lojas mais peculiares que já encontrei em minhas andanças. Isso porque você nunca sabe o que vai encontrar lá dentro. Com restrições de importação, a seleção de produtos é no mínimo curiosa. Aqui no Vedado, uma vez entrei em uma que só tinha feijão e ervilha enlatada. Prateleiras e prateleiras delas.
Mas isso não é regra. Em outras unidades já vi cerveja e coca-cola, cereais matinais, comida congelada e produtos de limpeza. Ontem mesmo esbarrei em uma que só vendia cosméticos e aproveitei para comprar creme para pentear Seda, sabonete Lux e desodorante Dove, três produtos que estavam prestes a terminar na minha nécessaire (nesceser?). Minha família, que veio visitar por uma semana, voltou para casa com a mala cheia de perfumes vendidos a preços ainda mais baixos que nos free shops.
Nessas lojas, nas Panamericanas e em outras geridas pelo governo, é preciso pagar no cartão, e os preços estão em uma nova moeda, chamada MLC, que se equipara ao dólar. Voltada para turistas e cubanos que de alguma forma têm acesso ao dinheiro gringo, essa é a forma que eles encontraram de lidar com a severa crise econômica que foi desencadeada após a pandemia, trazendo dólares para o país.
Quanto ao resto, há que caçar. Em geral, tendo dinheiro para pagar, encontra-se de tudo. O que não significa que não haja problemas de desabastecimento pontual de alguns produtos. Ouvi histórias de que, no ano passado, era difícil encontrar água mineral, embora esse não tenha sido um problema para mim.
Você também não vai encontrar o que você quer em todo lugar. E é isso que faz a dinâmica daqui ser tão inacessível aos turistas: é preciso saber onde procurar.
Há cerca de dois anos, o governo liberou a criação de micro-empresas privadas, outra medida para lidar com a crise. Conhecidas como Mipymes, esses estabelecimentos têm permissão para trazer de fora produtos alimentícios e domésticos.
Por isso, agora há uma grande oferta de importados: Heinz, Barilla, Pringles, risotto, polenta, tinta de lula. Tudo isso nas prateleiras de uma delicatessen italiana a quatro quarteirões de casa e a preços tão exorbitantes que uma compra para uma semana em um lugar desses pode custar mais que o salário médio de um cubano. Uma garrafa de azeite italiano, por exemplo, custa R$ 120. E foi assim que eu passei dois meses sem temperar a salada.
Com a onda de Mipymes, pelo menos um produto você encontra em abundância: a cerveja. Nunca foi tão barato beber em Cuba. É curioso pensar que, tendo permissão para importar pela primeira vez na vida, o cubano logo pensou em trazer birita. Mas o fato é que há cervejas aos montes, e de todas as partes do mundo, das mais baratinhas e desconhecidas às mais populares, como Corona e Stella. Um dos meus passatempos favoritos é comprar qualquer cerveja estranha que vejo pelas prateleiras. Outro dia, esbarrei em uma de rótulo azul e cuja semiótica inteira me remetia a uma latinha de água com gás. Tive que entrar no Google para descobrir sua origem. Era chinesa.
Nos paladares, como são chamados os restaurantes privados, dá para encontrar até queijo italiano e presunto espanhol, mas, assim como os importados de prateleira, dificilmente um cubano pode pagar por eles. Por mais que a oferta e variedade hoje sejam muito maiores que antes, esses ainda são benefícios acessíveis aos turistas e a outros poucos que recebem em dólar. São mudanças que transformam aos poucos a vida do país e que geram tantas possibilidades quanto desigualdades que antes não existiam. Deixo Cuba em duas semanas. Se eu voltar algum dia, talvez já encontre outra ilha.
Esse texto foi publicado originalmente na minha newsletter autoral Migraciones, onde eu compartilho textos sobre minhas andanças pelo mundo.
Quer saber mais sobre supermercado em Cuba? Assista ao vídeo sobre o tema que eu publiquei no meu canal! E se gostar do conteúdo, aproveita pra me seguir por lá!
Sobre a Autora:
Sou jornalista, escritora e nômade. Viajo o mundo contando histórias e provando cervejas locais desde 2010. Além do 360meridianos, também falo de viagens na minha newsletter Migraciones e no meu canal no Youtube. Vem trocar uma ideia comigo no Instagram. Dá pra saber mais do meu trabalho clicando aqui.
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