[News 360 - #52] Viagem para uma praia de areia azul
Aos sete anos, ganhei do meu avô um presente em forma de areia colorida: a imaginação
Minha primeira viagem foi para uma praia de areia azul. Fui com meu avô Alexandre, que mais tarde me levou para conhecer praias de areia verde, rosa, roxa e até um laranja inesquecível para meus olhos de menino, com grãos que vão se avermelhando em direção ao centro. Era uma praia de areia cor de lusco-fusco.
Eu tinha sete anos e ainda não conhecia o mar. Isso foi em 1992, quando meus avós paternos já tinham um pequeno apartamento em Guarapari — sala, quarto, cozinha e banheiro, com direito a varanda que se abre para o Atlântico, a um quarteirão da Praia das Castanheiras.
Acho que esse era o plano de aposentadoria deles. Toda manhã eles caminhariam juntos no calçadão. Depois, mergulhariam no mar. Minha avó ficaria na praia com as amigas e meu avô voltaria para o apartamento. Na varanda, ele aprenderia a desenhar e faria pinturas da paisagem praiana. Só que no meio do caminho tinha um neto, tinha um neto no meio do caminho; e eles acabaram permanecendo em Belo Horizonte.
Pertinho de Vitória, capital do estado, Guarapari é um balneário do Espírito Santo que a cada verão recebe centenas de milhares de mineiros no que deve ser uma das maiores romarias do mundo. Com a mudança definitiva impossibilitada, meus avós iam para lá quatro vezes ao ano, cruzando o sudeste em viagens noturnas e desconfortáveis da Viação São Geraldo. Eu, pequeno e em idade escolar, ficava. Feliz por estar com meus pais, triste por não conhecer a praia. Foi ao voltar de uma dessas viagens que ouvi meus avós conversando:
— Eu prefiro mesmo a Praia das Castanheiras, Maura. Foi uma boa comprar o apartamento lá. O mar é muito agitado na Praia da Areia Preta.
— Vô, tem uma praia de areia preta?
— Tem, Rafa.
— E de areia azul? Vermelha? Roxa! Tem praia de areia roxa, vô?
Meu avô sorriu e resolveu cultivar minha imaginação de menino: tem sim, filho. A Praia da Areia Vermelha é a mais bonita de todas, fica ao lado da Praia de Areia Azul e pertinho da Praia da Areia Preta. Nas férias te levaremos lá e você vai conhecer.
Enquanto minhas aulas não acabavam, meus avós continuaram com a peregrinação para a casa de praia, aves migratórias que a cada par de meses precisam da maresia. Na volta da viagem seguinte, meu avô me chamou no jardim da casa.
— Rafa, tenho um presente para você! Peguei um pouco da Praia de Areia Azul — e assim eu ganhei um pequeno pote de plástico com areia fininha, da cor de piscina de clube.
Na viagem seguinte, recebi mais quatro potinhos: areia vermelha, laranja, preta e roxa. Foi só quando peguei o ônibus com eles e desembarquei em Guarapari — e não achei minhas praias coloridas — que vovô confessou a brincadeira. Em BH, usando tinta e areia de construção, ele pintou as praias capixabas. Eu achei divertido e chegamos a repetir o processo juntos, ele me ensinando a colorir areia da mesma forma que me ajudava nas lições de matemática.
Ele partiu em setembro de 2023, aos 88 anos, oito meses e três dias.
— Quantos anos você tem, vô?
— Cinquenta e nove, Rafa. Nasci cinquenta anos antes de você. Então, quando você tiver dezenove, terei sessenta e nove. Nos seus vinte e nove anos, farei setenta e nove.
— E quando eu tiver trinta e nove anos, vô?
— Aí já não sei, filho.
Também demorei para entender o que meu avô disse nessa conversa, que ocorreu numa manhã de janeiro, na Praia das Castanheiras. Aos trinta e nove anos, já não tenho meu avô — eu, minhas irmãs, primos, primas, meu pai, meus tios e minha avó, principalmente, ficamos só com a saudade. Com a saudade em forma de risco preto na parede do corredor da casa dele, que começa no quarto e termina na sala de TV, espectro dos anos em que vovô viveu numa cadeira de rodas e marcava a parede a cada giro e bater da roda.
Meu avô me ensinou a gostar da série Friends e de Hilda Furacão, por causa dele me emociono ao ouvir Adoniran Barbosa e Frank Sinatra. Professor, com ele tive aulas particulares de matemática, física e química — e vi ele perder a paciência algumas vezes, quando eu não conseguia entender números e preferia me arriscar com letras.
Vovô até viajou, mesmo morrendo de medo de avião. A primeira memória que tenho da Praça de San Marco, em Veneza, é dele, não minha, tantas foram as vezes que ele, deslumbrado, narrou o impacto que sentiu ao descobrir o mundo. Isso também vale para Paris, Roma, Florença e Bruxelas.
Em um de nossos últimos encontros, contei para meu avô a história das areias coloridas — ele já não se lembrava. Agradeci pelo presente mais importante que uma criança pode ganhar. A imaginação.
Minha nova newsletter literária
Em 2023 eu publiquei meu primeiro romance, o livro “Dos que vão morrer, aos mortos”, na Editora Urutau. Nele, transformei em literatura o luto pela perda de minha mãe. Ela morreu em 2011, de forma violenta e sem explicação, enquanto eu fazia minha primeira viagem internacional, para a África do Sul.
Hoje, entendo que minha participação na viagem para a Índia e na volta ao mundo que criaram o 360meridianos, na virada de 2011 para 2012, só aconteceu por conta do luto. Era uma fuga.
Já comecei a escrever meu segundo romance — a ideia é que a publicação ocorra até o final deste ano. Criei uma newsletter literária para falar de luto, saudade, passagem do tempo e literatura. Me segue lá também? A assinatura é gratuita, mas há planos pagos com muitas recompensas.
Abraço e até a próxima!
Sobre o autor: Sou jornalista de viagem e escritor. Publiquei o romance “Dos que vão morrer, aos mortos”, com mil exemplares vendidos. Também marquei presença nas coletâneas Micros-Uai, Micros-Beagá, Crônicas da Quarentena e Encontros. Siga-me no Instagram: rafaelsettecamara.
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