Ninguém vive impunemente numa cidade
O local em que vivemos carrega nossas conquistas, dores e perdas, moldando quem somos
“Ninguém vive impunemente numa cidade”. A frase é do escritor Autran Dourado, um dos grandes da língua portuguesa. Autran, que morreu há 11 anos, falava da Praga de Franz Kafka, mas a ideia vale para qualquer lugar.
Eu nasci e vivo em Belo Horizonte. Junto com outras três milhões de pessoas, sou uma parte pequena da capital mineira, mas BH é uma parte gigantesca de mim. Ela molda minha maneira de falar, meu jeito de pensar, os pratos que como e meu time de coração, o América. Belo Horizonte está em mim e me modifica dia a dia, uma espécie de laço materno e, por que não, espiritual.
Em Cem anos de Solidão, Gabriel García Márquez escreveu:
“— Ainda não temos um morto — ele disse. — A gente não é de um lugar enquanto não tem um morto enterrado nele”.
Já a poeta Henriqueta Lisboa explicou essa relação no livro Belo Horizonte bem querer:
“Uma cidade se assemelha às outras
porém se a amamos é única:
tem a forma de um coração
traz nosso aroma predileto
é a paina do travesseiro
em que repousa a nossa fonte.”
A literatura e as cidades
Essa introdução é para explicar por que eu tornei minha cidade uma personagem do romance “Dos que vão morrer, aos mortos”, publicado pela Editora Urutuau.
Como contei em outras edições desta newsletter, o livro fala sobre amor, família, luto, loucura e passagem do tempo. É um romance - e isso significa que toda a história narrada ali é uma ficção, mas não quer dizer que os fatos não tenham acontecido. Alguns deles aconteceram na vida real; outros ocorreram apenas dentro de mim.
Ficção e realidade se confundem no enredo. Há 13 anos, minha mãe fazia o almoço quando o telefone tocou. Ela atendeu, deixou as panelas no fogo e em seguida saiu de casa. Nunca mais voltou. O corpo dela foi encontrado em outra cidade, 36 horas depois.
Até hoje não sei como ela morreu. Foi suicídio? Foi assassinato? Quem ligou pra ela? Como ela foi parar em outra cidade? Por que ela morreu? Com o passar dos anos e muita terapia, aceitei que nunca saberei as respostas. A dor virou saudade. A dúvida virou literatura. Me fiz adulto na morte de minha mãe. No luto pela partida dela, fui aprisionado pelo medo. Escrever um livro sobre isso foi minha libertação; essas páginas foram um exorcismo.
De minha mãe herdei um baú cheio de sonhos, dores, fotografias, utensílios de cozinha e centenas de bilhetinhos e recados. Utilizei algumas frases e pensamentos dela para escrever parte da obra — assim, sinto que realizei o sonho dela, que desejava ser escritora.
O título do livro é a tradução livre de Moritvri Mortvis, inscrição em latim que está no pórtico do Cemitério do Bonfim, o mais antigo de BH e onde minha mãe dorme profundamente. Vários lugares da cidade aparecem no romance. O Tobogã da Avenida Contorno, onde minha mãe morava, a Savassi, onde ela tanto andou. O Bairro Floresta, onde ela trabalhou e onde eu moro, e a Rua Sapucaí, com suas dezenas de bares.
Também aparecem a Igreja da Boa Viagem e a de Nossa Senhora das Dores; o Parque Municipal e a Praça Sete, a Praça da Liberdade e o Edifício Maletta. No livro, o personagem principal perambula pela Pampulha, bebe em botecos que existem há décadas e busca respostas pelas ruas de uma cidade viva.
O personagem narrador se chama Rafael, a mãe se chama Laura. Eu sou Rafael e minha mãe era mesmo Laura, mas o Rafael e a Laura do livro são personagens, assim como tantos outros - e assim como Belo Horizonte.
Para quem conhece ou vive em BH, “Dos que vão morrer, aos mortos” é uma viagem. Para quem nunca esteve aqui, é a possibilidade de conhecer um lugar e suas pessoas. As minhas pessoas.
Estamos entrando na reta final da pré-venda e mais de 300 pessoas já garantiram seus exemplares. É possível comprar o livro digital (R$ 35), o livro impresso (R$ 55, já com frete) e o livro com autógrafo (R$ 75 - mais caro porque envolve dois fretes a mais). Também tem a opção de adquirir vários exemplares do livro para dar de presente.
Meu muito obrigado para todo mundo que comprou. Para quem quer garantir seu exemplar, basta clicar aqui e seguir o passo a passo.
Para encerrar este email, deixo um poema do Drummond:
“A família é pois uma arrumação de móveis, soma
de linhas, volumes, superfícies. E são portas,
chaves, pratos, camas, embrulhos esquecidos,
também um corredor, e o espaço
entre o armário e a parede
onde se deposita certa porção de silêncio, traças e poeira,
que de longe em longe se remove. . . e insiste”.