[News 360 - #50] O galo da discórdia, a fúria conservadora e o modernismo de JK
Em 1944, um encontro de artistas em Belo Horizonte incomodou conservadores - e terminou com a destruição de várias obras de arte
O galo causou um ataque de fúria em Belo Horizonte. Isso foi em maio de 1944 e nada teve a ver com futebol - nessa época, o Clube Atlético Mineiro sequer tinha a ave como sinônimo, algo que só se popularizou nos anos 1950. Mesmo assim, manifestantes invadiram o Edifício Mariana, no centro de BH, e partiram para cima do galo.
O quadro atacado era de Candido Portinari. A pintura mostrava um galo, mas a cabeça da ave estava retratada em posição irreal - sim, isso foi suficiente para gerar uma reação conservadora contra todo aquele progressismo.
Na imprensa, o quadro de Portinari era jocosamente chamado de Olag - galo ao contrário. Nas ruas, pichações tomavam as fachadas dos prédios da Avenida Afonso Pena, a mais importante de Belo Horizonte: abaixo os modernistas.
Uma revista do Rio de Janeiro registrou: “Reina um barulho tremendo em Belo Horizonte por causa de um galo. Não de um galo vivo. Nem morto. Um galo pintado. A opinião belo-horizontina está guerreiramente cindida em duas facções irreconciliáveis: a dos amigos e a dos inimigos de um galo”.
“Quem ri desse galo é fascista! Ser inimigo da arte moderna é fazer o jogo dos reacionários!”, declarou na mesma reportagem o diretor da Biblioteca Pública, José Guimarães Menegale.
Mas, afinal de contas, por que o galo de Candido Portinari atravessou a avenida e entrou no Edifício Mariana, gerando tanto ódio dos conservadores? A culpa era do prefeito de BH, um certo Juscelino.
O médico virou prefeito
Não fosse uma guerra, Juscelino teria passado a vida como cirurgião. Formado pela Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, JK operava na Santa Casa e no Hospital Militar quando começou a guerra civil de 1932. São Paulo se levantou contra o governo de Getúlio Vargas e as tropas paulistas invadiram o sul de Minas e o Rio de Janeiro. Convocado, o médico foi para a frente de batalha, onde atuava no hospital de Passa Quatro, atendendo militares mineiros feridos no conflito.
Muitos dos políticos que mandariam no Brasil nas décadas seguintes participaram da batalha de Passa Quatro. “Naquela área, verificava-se, de fato, intensa fermentação política. O prestígio, que algumas pessoas adquiriram, levou-as mais tarde às mais elevadas posições do país”, escreveu JK em suas memórias. Daquelas trincheiras emergiram três governadores de estado - Ernesto Dorneles (RS), Zacharias Assumpção (PA) e Benedito Valadares (MG) e dois presidentes da República: Eurico Gaspar Dutra e o próprio JK.
Juscelino virou prefeito em 1940, em plena ditadura Vargas e por indicação do amigo e então governador de Minas, Benedito Valadares. Num primeiro momento JK recusou o cargo, mas Benedito não aceitou a negativa. Certa manhã, JK foi surpreendido ao encontrar o próprio nome no Diário Oficial: ele era o novo prefeito de BH. Resignado, o médico seguiu para a prefeitura e assumiu o cargo.
A prefeitura de JK é marcada pela modernização da capital mineira. A obra mais conhecida é, sem dúvidas, o Conjunto da Pampulha, hoje um Patrimônio da Humanidade segundo a Unesco. Apelidado de Prefeito Furacão, Juscelino mostrou em BH a mesma intensidade de obras que mais tarde apareceriam no governo de Minas e em Brasília. Ele abriu avenidas, criou bairros, asfaltou ruas e inaugurou restaurantes e moradias populares.
Outra ação de JK, porém, concentrou parte do ódio de seus opositores: a Primeira Exposição de Arte Moderna.
A chegada dos modernistas
Em 1944, os modernistas eram um fato consumado. Mais de duas décadas tinham se passado desde a Semana de Arte Moderna de 1922, um acontecimento que abalou o Brasil. Em 1924, os modernistas saíram de São Paulo e percorreram o país, passando por Belo Horizonte - foi nessa ocasião o encontro entre Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade.
Quando JK resolveu fazer uma exposição de arte, ele tinha vários objetivos. Juscelino entendia que BH dormia num leito de jardins e rosas, clima bucólico e provinciano demais para uma capital. Além disso, o prefeito queria aproveitar a visita dos principais artistas do país para apresentar oficialmente o Conjunto Moderno da Pampulha.
Na sexta-feira, 5 de maio de 1944, BH teve um sono intranquilo e acordou em guerra. Naquele dia foi inaugurada a Primeira Exposição de Arte Moderna.
Cerca de 40 nomes de peso da arte nacional desembarcaram em BH, além de artistas jovens e que se destacariam nos anos seguintes. Entre muitos outros, estiveram na mostra: Alberto Guignard, Oswald de Andrade, Burle Marx, Candido Portinari, Di Cavalcanti, Jorge Amado, Lasar Segall, Anita Malfatti, José Lins do Rego, Iberê Camargo, Carlos Scliar e Tarsila do Amaral.
Foram expostas 134 obras. A mostra ocorreu no Edifício Mariana, um dos primeiros arranha-céus de uma cidade que tinha só começado a se verticalizar. Se nos anos 1940 o Mariana era tomado por consultórios e salas de advogados, agora o prédio é um reduto para noivas. Atualmente, 70% das lojas do prédio são dedicadas ao mercado de casamentos.
Além do Mariana, a Exposição de Arte Moderna movimentou o Grande Hotel - atual Edifício Maletta, onde, nos anos 1960, Milton Nascimento surgiu - e o Prédio do Conselho Deliberativo, atual sede do Museu da Moda, o primeiro museu público do Brasil dedicado ao tema.
Oswald de Andrade, um veterano da Semana de Arte de 22, registrou o sucesso do evento de 44. “Quando Sérgio Milliet iniciou a série de conferências falando de pintura, o salão da Biblioteca Municipal tinha mais gente do que o estádio do Pacaembu nos grandes jogos”.
O Banco da Lavoura, arranha-céu localizado na Praça Sete, foi um dos prédios que amanheceram pichados. Uma multidão enfurecida tentou impedir a entrada do público nas palestras e exposições, sem sucesso. O ódio seguinte foi mais afiado. Munidos de lâminas de barbear, manifestantes retalharam oito dos quadros expostos na mostra.
Juscelino prometia liberdade total de discurso. “Na rua, não garanto, mas no interior da biblioteca a palavra é livre”, disse o prefeito.
Outro quadro que gerou ódio conservador retratava o prefeito, então com 42 anos. Os críticos diziam que o quadro estava inacabado, o que não deixa de ter sentido: a obra modernista de JK ainda estava no começo.
"Injustamente, a mostra de Belo Horizonte ainda não está na historiografia nacional, talvez por não ter acontecido no eixo Rio-São Paulo", disse Denise Mattar, que foi curadora de uma exposição que relembrou o modernismo dos anos JK.
Sobre o autor: Sou jornalista de viagem e escritor. Publiquei o romance “Dos que vão morrer, aos mortos”, que se aproxima dos mil exemplares vendidos. Também marquei presença nas coletâneas Micros-Uai, Micros-Beagá, Crônicas da Quarentena e Encontros. Siga-me no Instagram: rafaelsettecamara.
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